O ME-TOO CHEGOU AO FOLCLORE

Quem, em seu juízo perfeito, julgava que a ideologia de género jamais contaminaria o folk-lore, as tradições populares e a música de tradição oral, enganou-se redondamente. Acontece que recebeu recentemente consagração institucional como Património Cultural Imaterial (PCI) o “canto a vozes de mulheres”, cuja candidatura produziu as seguintes afirmações:

– o canto rural a vozes é um factor de identidade das mulheres;

– é um elemento de “desocultação” do papel das mulheres na sociedade tradicional;

– é um elemento “definidor da sexualidade das mulheres” no meio rural;

– o canto polifónico popular é composto por “mulheres activistas” a “lutarem externamente pelo reconhecimento da diferença cultural que as mulheres detêm”, como um “compromisso de género”.

Ora bem.

As cantadeiras populares que, ao longo de séculos, interpretaram nas comunidades rurais os temas musicais e os foram transmitindo às gerações sucessivas, nunca pensaram que, ao cantarem em polifonia nos trabalhos do campo, nas desfolhadas e nos serões, nos corais das suas igrejas, nas Janeiras, nos bailes de roda, nunca pensaram, dizíamos, que estavam a lutar contra a mentalidade machista dominante, contra o hetero-patriarcado, ou que estavam a desocultar a sexualidade feminina, enfim que estavam a subverter a sociedade.

Mas surge agora um grupo de iluminados e iluminadas que nos vem ensinar que essas cantadeiras não passavam de umas atrasadinhas que, na sua tacanhez e ignorância, não alcançavam a dimensão emancipadora, sexual, semiótica, revolucionária, dos seus cantares.

Coitadas, andavam completamente instrumentalizadas e dominadas pela ideologia machista e  capitalista, que as condenava ao obscurantismo mental e à pobreza.

Agora sim, com a iluminação da nata da intelectualidade esquerdista, com a inscrição do “canto a vozes de mulheres” na lista do PCI, essas mulheres foram finalmente libertadas do jugo machista a que estiveram sujeitas durante séculos, ou mesmo, quem sabe, milénios, talvez desde o neolítico.

Qualquer ser humano na plena posse das suas faculdades intelectivas, julgará tratar-se de uma anedota.

Todavia, não.

Estamos num país europeu, em pleno século XXI, mais de duzentos anos depois da Idade das Luzes. E, mesmo assim, a cegueira do fanatismo e da irracionalidade campeia na sociedade ocidental e chegou agora ao folclore.

Um conjunto de universitários, desconhecedores da realidade da vida rural, arregimentou grupos de cantadeiras revivalistas do norte do país e levou-as a subscreverem um pedido de inscrição no PCI, do Ministério da Cultura, em que decretam que o canto polifónico popular em Portugal era exclusivo das mulheres e uma forma da sua afirmação, social e sexual, na sociedade rural tradicional.

Já se sabia que a religião woke, na sua prodigiosa mistura de ignorância, fanatismo e estupidez, tem vindo, a partir das madraças universitárias, a alastrar a sua influência na sociedade, como metástase do tardo-marxismo em crise de orfandade. O que não se suspeitava é que o folclore e a música de tradição oral também fossem pasto do apetite dominador da seita woke. Mas sim. Nada lhes escapa.

Depois de, após o golpe de Estado de 1974, ter acusado o fado e o folclore rural de serem instrumentos do salazarismo, agentes do atraso, da pobreza e do obscurantismo, a esquerda doméstica descobriu agora que, afinal, essas manifestações e em geral todas as tradições populares possuem, na nata da sua essência, nas profundezas do seu ser, gérmens ignotos de subversão social e da revolta do povo. Só o povo, coitado, ignorante, é que não o tinha percebido.

O assunto é grave e é cómico.

Grave porque uma instituição cultural oficial consagrou como PCI uma falsidade histórica e etnográfica. Por isso, importa não esquecer os nomes das sumidades que avalizaram com o seu parecer uma tal falsidade e insultaram o meu bom-nome e a minha investigação, para que a vergonha e a ignomínia os acompanhem para toda a vida: Amélia Muge, Manuel Vaz Rocha, Salwa Castelo Branco, Domingos Morais, Manuel Pedro Ramalho Ferreira, Susana Bela Soares Sardo, Anne Caufriez, Joana Margarida Araújo, Maria do Rosário Correia Pereira Pestana.

Cómico porque fica evidente a olho nu que se trata de uma risível construção político-ideológica que, de tão desligada da realidade, se torna anedótica. Por isso, para que os interessados se possam divertir e apreciar a insanidade que campeia nas universidades, entendi ser do interesse público divulgar as peças processuais da referida candidatura, a saber:

– a minha oposição à candidatura, com dois documentos anexos (o segundo dos quais um conjunto de fotografias);

– a contestação dos proponentes à minha oposição, acompanhada de um parecer dos referidos catedráticos;

– a minha resposta a esta contestação.

Fica a sugestão: riso e cautela.

José Alberto Sardinha

 

Anexos:

DOC. Nº 1 Minha oposição à Candidatura

ANEXO 1

ANEXO 2

DOC. Nº 2 Contestação dos Catedráticos da Matéria

DOC. Nº 3 Minha Resposta à Contestação