Viola

Viola – Instrumento popular de cordas dedilhadas, com caixa de ressonância em forma de oito, actualmente com cinco cordas duplas, outrora com três duplas e duas triplas. É conhecido entre o povo por viola de arame, viola ramaldeira, ou simplesmente por viola. Não estamos a falar da agora chamada “viola de fado”, de cordas singelas (que é, na nomenclatura popular portuguesa o violãovide), mas sim da viola popular de cordas duplas, antigamente também triplas. Esta viola de que estamos tratando, a viola popular portuguesa, provém da tradição violística peninsular quinhentista, tendo sido cultivada durante séculos por todas as classes sociais, naturalmente com diferenças morfológicas, sobretudo a nível ornamental.

De início, ou seja, nos seus primórdios, não estava ao alcance da bolsa dos elementos do povo. Era um instrumento requintado, cuja construção exigia ciência, precisão e esmero – e por isso, caro (por essas alturas, o nosso povo tocava preferencialmente as “gaitas“, de seu próprio fabrico artesanal, denominação genérica que abrangia as várias espécies de flautas e pífaros, bem como a gaita-de-foles). Não obstante, a sua popularização já se fazia sentir no séc. XVI, porquanto o Pre. Juan Bermudo, na sua Declaración de los Instrumentos Musicales (1555), assinalava, a par da vihuela, esta tangida pela alta sociedade de então, a existência da “guitarra” (em português, viola) de quatro ou cinco ordens de cordas, tocada de ponteado, mas mais correntemente ao rasgado, no acompanhamento das danças e romances populares. Esta referência, que se aplica também a Portugal, diz muito provavelmente respeito aos goliardos, aos estudantes, aos ceguinhos mendicantes ou, em geral, aos músicos de rua e aos meios tabernários que todos eles frequentavam por igual.

Na Farsa de Inês Pereira (1523), Gil Vicente faz referência à viola como atributo do homem casadoiro. Esta tradição chegou aos nossos dias, pois no Norte do país era ainda costume, por meados do séc. XX, oferecer-se uma viola ao noivo e uma roca de fiar à noiva, atributos respectivamente do homem e da mulher segundo a tradição popular, como diz o rifão popular: “à mulher roca, ao homem viola”.

Em 1789, o professor de música coimbrão Manuel da Paixão Ribeiro deu a público um tratado sobre a viola de então, a viola barroca, intitulado Nova Arte da Viola, em que lamenta que a viola seja um instrumento tocado, mal segundo ele, por cada vez mais curiosos, leia-se populares. Fornece a afinação e o encordoamento da viola de então: mi-si-sol-ré-lá em cinco ordens de cordas, sendo duplas as três agudas e triplas as duas graves, num total de doze cordas. Esta afinação permaneceu até hoje como a mais corrente entre os tocadores populares, sem embargo de muitos deles adoptarem outras afinações, algumas destas vocacionadas para a interpretação de uma específica moda (ex.: “afinação do S. João velho”). A viola campaniça possui afinação diferente – vide infra, a referida obra em livro Viola Campaniça, o outro Alentejo, de José Alberto Sardinha.

Esta formulação cristalizada na viola barroca (cuja prática foi entretanto, a partir dos princípios do séc. XIX, abandonada pelas classes elevadas em favor do piano) popularizou-se e conservou-se até hoje entre o povo português um pouco por todo o país, embora com perda de algumas cordas e com afinações variáveis. É bom de notar que as violas campaniças encontradas nas mãos dos últimos tocadores tradicionais, bem como as violas nortenhas de factura antiga, que chegaram até nós, continuavam apresentando um cravelhal com doze cravelhas, embora já só estivessem em uso, nas mãos dos últimos tocadores tradicionais, dez cordas em cinco ordens.

Como forma popularizada da referida viola barroca, a viola popular portuguesa conheceu enorme favor entre o nosso povo de todas as províncias e assumiu formas, encordoamentos, afinações e designações variáveis, muitas de ressonância regional, como: viola braguesa (nome dado pelos violeiros do Porto, que, embora já conhecido anteriormente em meios restritos – Michel’angelo Lambertini, 1912 -, foi consagrado por Ernesto Veiga de Oliveira e, depois disso, amplamente difundido e praticado), amarantina (idem, designação proveniente dos violeiros do Porto), ramaldeira (como próprio de viola para o baile, para a “brincadeira”), beiroa (nome atribuído pelo investigador Ernesto Veiga de Oliveira?), toeira (idem?, a partir da denominação coimbrã, de discutível rigor), campaniça (vide), viola da terra (Açores), viola de arame, ou simplesmente viola.

Quando se fala em denominações regionais, não se está a dizer que são esses os nomes dados pelo povo de tal ou tal região. Está-se tão somente a lembrar que essas denominações aparecem ligadas a certas províncias ou regiões, associação porém, que nunca foi feita pelo povo, mas sim pelos eruditos que ao longo do tempo foram estudando o assunto, pois, na verdade, não fazia qualquer sentido que um tocador da Beira Baixa se referisse ao seu instrumento como “beiroa”, ou que um bracarense designasse a sua viola como braguesa (o que agora é corrente não o era antigamente). Chamavam-lhes, muito simplesmente, viola.

Por isso, entre o nosso povo, o instrumento sempre foi conhecido apenas por viola, ou por viola de arame (esta última designação fixou-se, como é bom de ver, quando o encordoamento passou das cordas de tripa, de porco e outros animais para as de metal, ou aço, substituição que entre o povo teve tanto impacto que impôs a expressão “de arame”). A designação mais frequente entre o povo rural, utilizada correntemente – e indistintamente em todas as províncias -, é a de viola ramaldeira, por estar associada ao baile, sinónimo de “brincadeira”, de ramaldeira – vide.

Todas as referidas violas regionais são, pois, da mesma família instrumental, sucedâneas populares da dita viola barroca (ou mesmo de algum tipo de viola que lhe tenha antecedido e que entretanto já se houvesse popularizado) e possuem várias afinações e também diversas formas de dedilhação. Pela importância que assumiu na vida sócio-musical do povo português, já desde 1997 que José Alberto Sardinha lhe chama genericamente, com toda a propriedade, viola portuguesa, denominação que a consagra como um dos mais importantes instrumentos musicais da nossa tradição popular.

Na verdade, este instrumento, resultado, como se disse, da popularização da referida viola erudita, não sobreviveu entre o povo senão em Portugal e, naturalmente, no Brasil. Os outros países europeus adoptaram preferencialmente a guitarra espanhola, que é, na realidade uma alteração e simplificação, mais profundas, da mesma viola barroca: perdeu as cordas duplas e triplas e, para compensar a perda dos bordões ao grave, introduziu uma outra corda, o mi grave. Daí que todos esses países passassem a chamar “guitarra” a esse instrumento espanhol de seis cordas singelas, ao passo que Portugal e Brasil, porque cultivavam  a dita viola popular (portuguesa), de cordas  duplas e triplas, tivessem dado àquele o nome de violão – v. Violão.

A função da viola popular portuguesa prende-se essencialmente com a animação dos bailes populares, para o que se revelou um instrumento especialmente vocacionado, sobretudo no toque em rasgado. Antigamente, “uma viola só, fazia o baile!” O ponteado, muito rico e frequente nas ilhas açoreanas, é igualmente usado para a bailação, mas tem utilização preferencial para os cantares amorosos, sobretudo serenatas.

No Almanaque de Lembranças para 1860, um artigo sobre a romagem da Senhora das Neves, Viana do Castelo, fala dos romeiros “cantarolando e dançando ao som de seus afinados instrumentos, que são pela maior parte, duas ou três violas, igual número de clarinetas e rebecas, algumas vezes o belo violão e sempre as castanholas hemisféricas de seco e duro buxo”. Este texto revela exactamente a convivência, em meados do séc. XIX, dos dois termos, viola e violão, utilizados, naturalmente, para duas realidades distintas, como referido. Sem embargo, a viola popular era também utilizada em ocasiões cerimoniais, como era o caso do cantar das almas em Vila Verde de Ficalho (inf. de Armando Leça), ou das festividades do Espírito Santo (Alcaide, Fundão, bem como nos Açores).

Em 1895, César das Neves, no preâmbulo ao volume II do seu Cancioneiro de Músicas Populares, mostra-nos a popularidade de que gozava naquela época a viola popular e a sua disseminação geográfica por todo o país, quando, ao falar dos descantes ao desafio, das chulas e das danças, escreve o seguinte: “A viola de arame (viola chuleira com cordas de arame d’aço) é o instrumento genérico, não só em todo o país, mas em qualquer outra parte onde exista uma pequena colónia portuguesa. Basta um só tocador para animar um numeroso rancho de indivíduos de ambos os sexos, sem distinção de idade, e provocar as cantigas e as danças”. Logo a seguir, o autor fala da presença simultânea das violas de arame e dos violões “nas festas campestres do Minho”, referência da maior importância na medida em que, falando simultaneamente dos dois instrumentos, demarca nitidamente que se trata de realidades distintas – v. Violão.

Mais: Instrumentos Musicais Populares Portugueses, de Ernesto Veiga de Oliveira; Viola Campaniça – o outro Alentejo, Círculo de Leitores/Tradisom, 2001, de José Alberto Sardinha, p. 45 a 57, edição em livro, acompanhado por dois CDs, com sessenta e um registos sonoros, todos interpretados com violas campaniças.

Discografia: Recolhas Musicais da Tradição Oral Portuguesa, 1982, de José Alberto Sardinha, Disco 1, Lado B, Faixa 4 (Vitorino dos Piães, Ponte de Lima), Disco 2, Lado A, Faixa 6 (Manhouce, S. Pedro do Sul); Viola campaniça – o outro Alentejo, recolha musical de José Alberto Sardinha, ed. discográfica em vinil, Contralto 1986; Portugal – Raízes Musicais, BMG/Jornal de Notícias 1997, recolhas musicais de José Alberto Sardinha, CD 1, faixas 1 (Santa Maria da Feira), 5 (Baião), 10 (Vila Nova de Gaia), 17 (Felgueiras) e 19 (Ponte de Lima); CD 3, faixas 1 (Lamego), 18 (Murtosa) e 32 (S. Pedro do Sul); CD 5 (Alentejo), faixas 1, 6 e 28; Disco 6, faixas 1 (Açores – Ilha de S. Miguel), 2 (Madeira), 4 (Açores – Ilha Terceira), 6 (Açores – Ilha de S. Miguel), 8 (Madeira), 10 (Açores – Ilha Terceira), 14 (Açores – Ilha Terceira), 19 (Madeira), 21 (Açores – Ilha Terceira), 25 (Açores – Ilha de S. Miguel) e 27 (Madeira); A Origem do Fado, de José Alberto Sardinha, CD 3, Faixas 2 (S. Sebastião, Ilha Terceira), 3 (Boscras, Baião), 6 e 7 (Velas, Ilha de S. Jorge), 11 (Ribeira Seca, Ilha de S. Jorge), 16 (Livração, Marco de Canaveses), 18 (Ponta Delgada, Ilha de S. Miguel), 19 (Santa Maria da Feira), 21 (Posto Santo, Ilha Terceira);  Recolhas de Armando Leça, inéditas, arquivo RDP, bobine AF-523 (Lousado, Famalicão), AF-526 (Póvoa de Varzim), AF-533 (Vilarinho, Lousã), AF-534 (Vilarinho, Lousã), AF-536 (S. Pedro do Sul e Manhouce, S. Pedro do Sul).

N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.