Fandango

Fandango – Dança originária de Espanha, introduzida em Portugal no séc. XVIII através das companhias de teatro ambulantes. Fazer remontar a origem do fandango aos celtiberos ou aos tempos romanos, como já se tem escrito, é completamente errado e fantasioso, afirmação que um mínimo de conhecimento sobre a História da Música ou da Dança não devia autorizar.

Os ranchos de representação folclórica e o espírito bairrista dos ribatejanos propagaram a ideia de que pertence ao Ribatejo o berço, a origem e/ou a exclusividade do fandango, asserção completamente errónea, que importa desmistificar. Como se passa a expor:

A notícia mais antiga sobre esta dança parece ser a que nos é oferecida pelo padre espanhol Marti, que a descreve tal como a observou em Cádis no ano de 1712 (releve-se o exagero da antiguidade multi-secular, que é, obviamente, uma afirmação não sustentada): “Conocí esta danza de Cádiz, famosa después de tantos siglos, por sus pasos voluptuosos, que se ve ejecutar aún actualmente en todos los barrios y en todas las casas de esta ciudad, aplaudida de modo increíble por los espectadores: no es festejada solamente por gitanas u otras personas de baja condición, sino también por las mujeres más honestas y de posición más elevada. Los pasos de esta danza son bailados lo mismo por un hombre y una mujer, que por varias parejas, y los bailadores siguen el compás de la música con suaves ondulaciones de su cuerpo…”

Em 1757, o poeta e boémio obidense Manoel da Silveira Malhão confirma que a dança já estava implantada entre nós e atribui-lhe inquestionavelmente proveniência espanhola, além de revelar qual a região portuguesa que então mais reputada era na prática da mesma dança: “… e o fandango bailado por mim fazia crer a quem me via que eu era natural de Castela, ou pelo menos filho de Borba”. Esta é, até ao momento, a notícia mais antiga do fandango em território português – e não se reporta ao Ribatejo, mas sim… ao Alentejo.

Em Portugal, o fandango tornou-se a dança preferida por todas as classes sociais, de tal forma que chegou a ser considerada como a dança nacional por alguns viajantes estrangeiros que nos visitaram nessa época: Joseph Baretti viu dançar o fandango em Elvas (viagem a Espanha e Portugal entre 1761 e 1765); Richard Twiss relata a cena de um taberneiro batendo o fandango com sua mulher ao som de uma “guitarra” (viola) – viagem em Portugal em 1772; James Murphy, também na segunda metade do séc. XVIII, mostra-nos, na ilustração His guitar, um par de Mafra bailando o fandango – gravura reproduzida.

Assumia então o fandango características voluptuosas, em que se destacava a sensualidade dos meneios femininos e o frémito galanteador do homem, que rodopiava em torno da mulher, cantando e gritando até à exaltação, com gestos e modos que lhe valeram, por vezes, o epíteto de dança obscena. Este carácter foi-se delindo com o tempo, o que não impede de a considerarmos, ainda hoje, uma dança de galanteio e sedução, mesmo quando a sua evolução a conduziu a puras demonstrações de agilidade e exibicionismo.

A forma tradicional de bailar o fandango, quer em Espanha quer em Portugal, era de homem versus mulher, frente a frente, exibindo sapateado alternadamente. Esta era a fórmula coreográfica original, de sedução e exibicionismo entre os dois sexos, divulgada pelas companhias de teatro, que a exibiam nos intervalos das suas representações dramáticas. A prática popular veio depois a introduzir-lhe alterações e desenvolvimentos com o decurso do tempo.

Entre o povo português acabou por consagrar-se a coreografia colectiva, geralmente em colunas de três ou quatro, ou mais, bailadores de cada lado, ou em roda com o mesmo número de pares (estas formas coreográficas já são soluções populares decorrentes das, ou melhor, subsequentes às actuações dos grupos ambulantes de teatro que até nós trouxeram o fandango).

Em Remondes, Mogadouro, Trás-os-Montes, por exemplo, a coreografia do fandango estava ainda próxima desses primórdios, pois por volta dos anos 1950, era bailado da seguinte forma (recolha de José Alberto Sardinha): geralmente (ou pelo menos) dois pares, soltos, evoluindo em roda, com as moças recuando e os rapazes frente a elas; a dado passo, param e sapateiam frente a frente, podendo qualquer dos elementos do par, mas mais correntemente o rapaz, circular em redor da moça sapateando em jeito de torneio de sedução e conquista; depois, segue a roda e assim por diante. Nesta aldeia, a loucura pelo fandango era tal que o tocador de guitarra local afirmou: “Em começando assim (toca o fandango), até se matavam a bailar”.

O sapateado passou, a partir de certa altura, ainda no séc. XIX, a ser especialmente cultivado pelos homens como forma de exibicionismo e despique, no fecho dos bailes ou nos convívios tabernários. Nos bailes, esta exibição de sapateado e disputa bailatória entre rapazes, tanto ocorria em frente das moças, como quando estas já se haviam retirado e eles se encontravam quentes da pinguinha. O fandango, nesta versão, tornou-se, assim, num jogo de despique masculino.

Há notícias do séc. XIX que relatam a prática, na Estremadura (note-se: na Estremadura e não no Ribatejo), dessa disputa bailatória entre dois homens, frente a frente, em alternado frenesim de sapateado, no final dos bailes populares. Nesta forma coreográfica, estádio final da referida evolução desde os seus primórdios, o fandango deixou, pois, de ser um baile para  se tornar num jogo de destreza, desafio e afirmação masculina.

Aliás, o costume de os homens se despicarem a bailar um contra o outro não é privativo do fandango: também com o fado e com a chula, em certas regiões, isso acontecia e, por exemplo, em Terras da Feira usava-se a Pastorinha para esse efeito; na Beira Baixa a dança da tranca (em Silvares é o fandango que serve a este jogo, ao passo que no Souto da Casa, do mesmo concelho do Fundão, qualquer “moda salteada”, como ali lhe chamam, servia para o efeito, designadamente o vira); e no Algarve a polca (tradição do estravanca). Bem analisado o assunto, este tipo de brincadeira ou despique bailatório nem sequer era privativo dos homens. Igualmente as mulheres por vezes se despicavam entre si e também contra os homens (exemplo da referida Dança da Tranca, em que o desafio bailatório faz defrontar homem versus mulher).

Também um jogo similar ocorria com pares agarrados, como é o caso do curioso costume praticado na região da Serra do Socorro, concelho de Mafra: como a valsa de dois passos (noutros locais conhecida por moda de dois passos, na realidade uma mazurca) era muito popular, demarcava-se o chão com quatro garrafas de vinho, dentro de cujo espaço o par tinha de bailar, não podendo excedê-lo sob pena de se partirem as garrafas e entornar o precioso líquido.

Estamos, assim, perante simples jogos de destreza bailatória, como é igualmente o caso de se bailar em cima de uma estreita mesa da taberna, ou de uma medida de cereal, por vezes com uma garrafa ou um copo de vinho na cabeça, que não podia cair, habilidade muito frequente com várias modas coreográficas, mas sobretudo com o fandango por este exigir um sapateado mais complexo e, como tal, mais perícia e habilidade.

Deve, pois, resumir-se a coreografia do fandango a dois modelos essenciais: um, o originário ou tradicional, bailado em coluna (ou em roda), homens em frente das mulheres; outro (que não é um baile, mas um mero jogo de destreza e exibição), o modelo da taberna e do despique de sapateado, forma final da descrita evolução, homem versus homem, por vezes mulher. Ambas as formas têm o seu valor etnográfico, mas  importa conhecer e distinguir as respectivas naturezas e funções.

Ao que tudo indica, o fandango foi uma forma privilegiada de canto ao desafio no séc. XIX, como já era salientado por Mário Costa. Em 1984, José Alberto Sardinha registou em Cruzes, Caldas da Rainha, um extraordinário exemplo do antigo fandango cantado, justamente ao desafio, com acompanhamento de harmónio – v. discografia infra. Já em 1983 o mesmo investigador havia gravado no Reguengo Grande, concelho da Lourinhã, um “Fandango da Ronda”, próprio para ser cantado durante as rondas dos rapazes pelas ruas da aldeia, em dias de festa, aos domingos como chamamento ao baile e nas noites de sábados, como anúncio das serenatas que dirigiam às moças suas preferidas – v. Partitura 98 do livro Tradições Musicais da Estremadura e faixas 27 e 28 do Disco 3 que acompanha a mesma obra.

Na Beira Baixa, Beira Alta e Beira Litoral é bailado e cantado um tema popular aparentado com o fandango, também de base ternária, conhecido por “Saloio” ou “Saloia”, provavelmente, como aquele, descendente da antiga seguidilha. Na sua versão cantada, é frequentemente utilizado como forma musical de saudação aos noivos, em vários cerimoniais dos casamentos – v. “Parabéns aos noivos”, forma popular de epitalâmio, recolhido pelo mesmo investigador em Idanha-a-Nova, Beira Baixa, aqui com acompanhamento de guitarra, bem como no aro concelhio de Óbidos, aqui conhecido por “Dar o descante”.

Ao longo do séc. XIX, o centro e sul do país foram substituindo o fandango como canto ao desafio a favor do fado corrido (vide), graças à crescente popularidade deste. Armando Leça, através das recolhas que realizou na primeira metade do séc. XX, aponta o fandango como uma das três danças mais bailadas na Estremadura.

A disseminação geográfica do fandango por todo o território nacional está perfeitamente documentada e é indiscutível. Além do que já se referiu, damos mais alguns exemplos:

A recolha estremenha de José Alberto Sardinha junto das pessoas mais velhas das aldeias revela a gravação, nos últimos três decénios do séc.XX, de trinta e cinco exemplares musicais de fandango, nos concelhos de Mafra, Sintra, Torres Vedras, Sobral de Monte Agraço, Cadaval, Lourinhã, Peniche, Óbidos, Caldas da Rainha, Alcobaça, Porto de Mós, Sesimbra, Loures, Batalha e Leiria – v. Tradições Musicais da Estremadura. Informa ter sido esta a dança tradicional que encontrou com mais frequência em toda a Estremadura.

Do arquivo sonoro nacional, inédito, deste investigador, fazem parte, referentemente a esses três decénios, setenta e três exemplares de fandangos, gravados de norte a sul do país junto dos mais velhos das populações rurais, desde Vimioso e Miranda do Douro até Odemira, passando pelos aros concelhios de Mogadouro, Sátão, Cinfães, Trancoso, Guarda, Penamacor, Covilhã, Fundão, Castelo Branco, Oleiros, Salvaterra de Magos, Rio Maior, Azambuja, Ponte de Sor, Avis e Nisa (não falando nos supra-referidos concelhos estremenhos).

Só no aro concelhio do Fundão, a pesquisa do mesmo investigador registou sete fandangos musicalmente distintos da versão musical mais conhecida como fandango ribatejano, interpretados  pelos mais variados instrumentos: guitarra, harmónio, concertina e realejo de boca.

No seu Cancioneiro Minhoto, Gonçalo Sampaio deu a público pautas musicais de oito fandangos, todos grafados em 3/8, colhidos nas décadas de 1920 e 30, nos concelhos de Ponte de Lima, Ponte da Barca e Valença.

Em Alfarim, Sesimbra, na Festa de Natal era costume bailar-se o fandango ao som da gaita-de-foles e caixa. Na festa de 1935, “o velho fandango, de ritmo animado, serviu de entretenimento dos antigos foliões” – jornal O Sesimbrense de 5/1/1936. Note-se que nessa época já o fandango era considerado um baile “velho”, especialmente cultivado pelos foliões mais “antigos”.

Num livro de 1855, vem descrita a festa de S. João em Nisa, durante a qual as moças dançavam o fandango ao som de violas e flautas, fandangos esses que já nessa altura eram considerados “antigos” – Memória Histórica da Notável Villa de Nisa, de Motta e Moura.

A popularidade e a importância que o fandango alcançou levaram-no a fazer parte integrante de vários tipos de manifestações, como foi o caso de danças de rua, provavelmente procedentes das antigas danças das procissões de Corpus Christi: em 1866, exemplo de uma “dança dos pretos” na festa de Nossa Senhora da Assunção, de Arcozelo da Serra, concelho de Gouveia, na Beira Alta, durante a qual foi interpretado um fandango – v. Diccionário abreviado de chorografia, topografia e archeologia das cidades, vilas e aldeias de Portugal, t. I, p. 75, de J. A. de Almeida.

Leite Bastos, no seu livro “Os crimes de Diogo Alves”, descreve com vivacidade e conhecimento os meios tabernários de Lisboa e, relativamente a 1839, fala de uma taberninha na Calçada do Duque, conhecida pela tasca da Joaquina do Forno, assim relatando os momentos de folguedo: “Ali cantava-se, bebia-se e bailava-se o fandango, o solo inglês e o fado a toda a hora do dia e da noite”.

Vale também – diremos vale sobretudo, atenta a antiguidade de dois séculos e meio da informação – o testemunho de Richard Twiss, no séc. XVIII: “Foi em Mafra que tive o prazer de ver dançar o fandango. Foi numa tasca. Foi dançado pelo dono da tasca com sua mulher e com o acompanhamento de uma guitar (decerto viola). O tocador dedilhava várias cordas juntamente, a três tempos, e batia com a mão o compasso no corpo do instrumento. (…) Os dançantes estão num movimento geral com todo o corpo e todos os membros, algumas vezes até indecentemente. Marcam o compasso com o pé e com castanholas. Havendo falta deste instrumento, marca-se a cadência com o estalo dos dedos. O homem tem o chapéu posto na cabeça e dança com sua dama chegando-se e afastando-se, e fazendo numerosas reviravoltas e requebros. Dança-se o fandango no teatro com muita arte: toda a orquestra toca a música, que é a mesma quase por toda a parte. Depois que o meu estalajadeiro acabou de dançar, correndo-lhe o suor em bica, um outro par os substituíu.”  – Voyage en Portugal et en Espagne, 1772-1773.

Importa ainda lembrar a quintilha de Nicolau Tolentino, que faz referência ao fandango em Frielas, Loures, também no séc. XVIII: “Em solene procissão / Une a frieleira casta / O fandango e a devoção (…)”.

Salientaremos ainda que Luiz de Freitas Branco, profundo conhecedor da realidade popular do Alentejo, compôs em 1919 a sua Suite Alentejana, em que incluíu um fandango.

Fácil é, assim, concluir que é completamente erróneo atribuir ao Ribatejo a origem, a exclusividade, ou a primazia do fandango. Pelo contrário, estamos perante uma dança bailada em todo o território nacional e mesmo, nalgumas regiões (como é o caso documentado da Estremadura e do Alentejo), da mesma forma que os ranchos de representação folclórica do Ribatejo vieram, como resultado da evolução referida, a consagrar (despique de exibição homem versus homem). E note-se que as notícias provenientes da Estremadura sobre a prática deste fandango de exibição masculina são bem anteriores às do Ribatejo, pois, como se disse, remontam ao séc. XIX.

Deverá, por fim, salientar-se que os fandangos conhecidos noutras províncias são, com muita frequência, musicalmente muito mais ricos e interessantes do que o fandango correntemente considerado como “ribatejano”, este do ponto de vista musical inquestionavelmente pobre e banal. Não deverá, contudo, deixar-se sem referência um facto assinalável: as versões colhidas por todo o país parecem, na sua maioria, constituir variações sobre o mesmo estrato melódico, este próximo da versão consagrada pelos ranchos de representação folclórica ribatejanos. Cumpre a este respeito lembrar o texto de Richard Twiss, acima transcrito, na parte em que refere que no teatro a orquestra toca a música do fandango, “que é a mesma quase por toda a parte” – notícia da sua visita a Portugal em 1772.

A estrutura rítmica característica do fandango é de base ternária, devendo ser grafado em 6/8, 3/8 ou 3/4, conforme as versões.

Mais: Tradições Musicais da Estremadura, Tradisom 2000, de José Alberto Sardinha, p. 353 a 362; Cancioneiro Tradicional de Óbidos, de José Alberto Sardinha, no prelo; Fundão – Memória, Tradição e Música (no prelo, edição a cargo da Câmara Municipal do Fundão), de José Alberto Sardinha e David Brito.

Discografia: Portugal – Raízes Musicais, recolhas de José Alberto Sardinha, BMG/Jornal de Notícias 1997, CD 2, faixa 13 (Miranda do Douro), CD 3, faixa 20 (Miranda do Corvo), CD 4, faixa 20 (Guarda), CD 5, faixas 4 (Caldas da Rainha), e 26 (Salvaterra de Magos); Cancioneiro Tradicional de Óbidos, do mesmo autor, no prelo (quatro fandangos reproduzidos nos CDs que acompanham o livro, todos do aro concelhio obidense); Tradições musicais da Estremadura (quatro fandangos reproduzidos nos CDs que acompanham o livro, colhidos nos concelhos de Lourinhã e Caldas da Rainha – faixas 26 a 29 do disco 3), também do mesmo autor; Idanha-a-Nova, toques e cantares da vila, EMI 1995, faixa 3, do mesmo autor;  Recolhas de Armando Leça, inéditas, arquivo RDP, bobine AF-532 (Condeixa), AF-538 (Escalos de Baixo, Castelo Branco), AF-540 (Azinhaga, Golegã).

N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.