Fado – Género poético-musical, intrinsecamente português, tradicionalmente cantado com acompanhamento de guitarra portuguesa e viola (viola francesa ou violão – vide). As suas origens têm sido motivo de acesa polémica ao longo dos tempos. Foram criados mitos de origem (de que o caso da Severa é exemplo maior), a partir de simples afirmações ocasionais e infundadas de alguns autores. As teorias são variadas: trovadorismo, herança árabe, melopeias africanas, danças brasileiras, ondular das vagas nas naus quinhentistas, etc.
Rui Vieira Nery defende uma tese multicultural, segundo a qual o fado nasceu a partir de uma dança erótica afro-brasileira referenciada no Brasil de princípios de Oitocentos e trazida para Portugal com o regresso da família real e da corte à metrópole, em 1821. Uma vez introduzida nos bairros pobres de Lisboa, essa dança ter-se-ia transformado, por um processo a que chama de síntese cultural, na canção lisboeta consagrada como fado.
Em 2010, José Alberto Sardinha publicou o mais desenvolvido e aprofundado estudo sobre as origens do Fado, justamente intitulado A Origem do Fado, em que defende que o fado constitui um prolongamento do romanceiro tradicional (vide), género poético de carácter narrativo oriundo dos alvores da literatura medieval europeia, cantado inicialmente pelos jograis pelos castelos e feiras e depois, ao longo dos séculos, por toda a sorte de músicos mendicantes.
Épico de início, este género narrativo novelizou-se a partir do séc. XVI, começando a versar assuntos de carácter sentimental, primeiro entre reis, rainhas, princesas, condes e cavaleiros.
Depois, no séc. XVIII, essas narrativas passaram a ter por objecto as personagens populares, como a vida de um soldado, os amores de uma costureirinha, o suicídio de amor do José Pina e Maribela, a tristeza da orfãzinha, o crime do jogador, a Deolinda tecedeira, a morte dramática da amada com a febre amarela, o amor de uma pastorinha, etc. (fase das canções narrativas, ou romances de cordel). Esta é a última fase da canção narrativa tradicional – e a primeira fase do Fado.
É, pois, neste último estádio da canção narrativa tradicional que se deve encontrar a génese do Fado, como se passa a explicar:
As referidas histórias de vida de personagens populares eram cantadas nas feiras e nas ruas pelos músicos mendicantes a que o povo chama genericamente ceguinhos (por integrarem habitualmente músicos cegos), que vendiam folhetos com esses poemas narrativos. Justamente por versarem a vida das pessoas comuns, os seus amores e desamores, os seus ciúmes e traições, os crimes e as desgraças, enfim os episódios ou desenlaces trágicos das suas vidas, os próprios intérpretes apelidaram esses cantares de “fados” (o fado da Deolinda, ou seja, a vida, o episódio ou desenlace trágico da vida da Deolinda, etc.). Isto porque a palavra “fado” tem, na língua portuguesa, o significado erudito de destino, mas também um sentido mais popular, próximo daquele, de vida, episódio de vida, desenlace de vida: “Põe a mão no teu seio, não dirás do fado alheio” (não dirás da vida alheia) – provérbio popular colhido por Raphael Bluteau, no seu Vocabulário Portuguez e Latino, 1721.
Por isso, os ceguinhos que cantavam esses poemas pelas ruas e feiras de todo o país, ganharam o costume de os publicitar anunciando: “Escutai agora o triste fado (o triste fim, o triste desenlace de vida) da Isaurinha, que se matou por se ter fiado no maroto do Manel, que a enganou!” Assim nasceu o fado, a partir do significado popular de episódio de vida, de desenlace de vida, que os ceguinhos disseminaram para designar as histórias tristes, dramáticas, trágicas (ou seja, os fados) das pessoas, das figuras populares que eram as personagens desses seus cantos narrativos, dessas histórias que cantavam. Das feiras e das ruas, este fado passou às tabernas, onde tais músicos ambulantes estanciavam e actuavam a troco de passadio.
Do ponto de vista musical, é evidente que a estrutura melódica dos cantares narrativos evoluíu ao longo dos tempos em consonância com as formas de composição musical próprias de cada época histórica. Só no séc. XVIII , com a predominância do tonalismo setecentista dos modos maior e menor, adoptou a formulação melódica que hoje conhecemos. Foi também nessa altura que se consagrou definitivamente a designação de “fado” como narrativa de histórias de vida através, como se disse, da referida prática dos músicos ambulantes, embora, segundo a insigne Carolina Michaelis de Vasconcelos, já anteriormente se usasse esse nome, asserção que a mesma estudiosa não desenvolve, nem comprova documentalmente (pelos escritos até agora consultados), ficando-se na dúvida se se trata de uma simples impressão, ou de uma afirmação sustentada, o que nos parece mais credível atenta a sua reconhecida probidade intelectual.
Na primeira metade do séc. XIX, a nobreza lisboeta frequentadora das tabernas e prostíbulos trouxe o fado, pelo seu pitoresco, para as suas festas e salões, assim ascendendo o fado ao gosto da alta sociedade. Um exemplo destes convites foi a Severa, que chegou a cantar nessas festas e palácios a convite do Conde de Vimioso, seu amante. Uma vez aceite pela alta sociedade, o fado caíu em moda e passou a ser cultivado também pela classe média, quer no teatro musical e na revista, quer nos pequenos concertos domésticos com acompanhamento de piano. Proliferou a edição de pautas musicais de fados. Assim passou o fado, em meados do séc. XIX, da fase primitiva para a fase artística, com compositores e letristas conhecidos, eruditos e semi-eruditos. Foi assim adoptado pelo teatro de revista e, mais tarde, passou ao disco e à rádio.
Em suma, esta tese considera que o Fado não nasceu em Lisboa, nem na taberna, mas sim na rua, por todo o país, a partir de um substracto comum a aldeias, vilas e cidades, constituído pela evolução do velho romanceiro tradicional na sua fase terminal, agora na voz dos músicos ambulantes, que cantavam pelas feiras de todo o Portugal as histórias das vidas (fados) e das tragédias humanas, a que, por vezes pejorativamente, se chama o “fado de faca e alguidar” ou o “fado da desgraçadinha” ou o “fado do ceguinho” (et pour cause…), que é, na verdade, o fado primitivo, ou seja, o fado prístino, o fado original.
Além deste tronco primacial, a que se deverá chamar fado lamentoso, também recebeu o nome de Fado um género parodístico, por possuir igualmente carácter narrativo (contava histórias humorísticas sobre a vida de um cão, de um soldado, de um frade, de um político caricato ou caído em desgraça, etc.). Neste género, os temas eram satíricos, jocosos e, por isso, os seus intérpretes, os músicos mendicantes, foram buscar à música de tradição oral que corria na altura um género mais alegre, mais consentâneo com essa temática: a escolha recaíu sobre o passacalhe, então muito em voga entre o povo nas suas distintas variantes, o qual está na base dos corridos, maiores e menores – v. Fado corrido. Este fado corrido era bailado, pois o seu ritmo a tanto convidava. Depois também se passou, por extensão terminológica, a chamar fado a outras formas bailadas executadas pelos mesmos músicos ambulantes nas mesmas circunstâncias de lugar, id est, nas tabernas e casas de pasto, mesmo que já não suportassem poemas narrativos. Foi o caso da chotiça (vide), que esteve na base do fado batido, o qual tanto ocorre sob a forma exclusivamente instrumental, como suporte do canto ao desafio.
Pelo exposto, o Fado não começou por ser um género musical, mas sim um género poético, aliás de harmonia com a sua primeira definição dicionarizada constante da sétima edição do Dicionário de Moraes, publicado em 1878: “FADO – poema do vulgo de carácter narrativo em que se narra uma história real ou imaginária de desenlace triste, ou se descrevem os males, a vida penosa de uma certa classe, como no fado do marujo, da freira, etc. Música popular com um ritmo e movimento particular que se toca ordinariamente na guitarra e tem por letra os poemas chamados fados” (sublinhado nosso). Estes poemas chamados fados vieram depois, ao longo da fase artística do fado, a conhecer tratamentos musicais os mais variados.
Deverá, pois, pôr-se em relevo que o Fado não é, nem nunca foi, um género musical. No seu seio, tal como hoje o escutamos em disco, no palco, no espectáculo, albergam-se os mais diversos ritmos e compassos, resultantes das múltiplas contribuições musicais que ao longo de século e meio se foram introduzindo no universo conceptual de “fado”: marchas, valsas, chotiças, mazurca, tango, pasodoble, one-step, slow, fox-trot, bolero, etc. – v. etiquetas dos discos dos primeiros decénios do séc. XX. Quando o fado caíu em moda, tudo passou a ser fado, ou “ao fado”. Trata-se de um fenómeno de generalização muito comum entre o povo, o mesmo tendo ocorrido, após 1840, com aquilo que veio a denominar-se por “polca-mania”. Os compositores da fase artística apressaram-se a cognominar as suas criações com o título ou o sub-título de fado, para melhor agradarem ao povo consumidor e assim “venderem o seu produto”. No início do séc. XX, existem partituras e gravações em disco com os seguintes sub-títulos: fado-marcha, fado-valsa, fado-tango, fado-fox trot, etc.
A guitarra portuguesa, com o seu toque argentino e o retinir choroso das suas cordas, tão apropriado ao sentimentalismo do fado lamentoso (recorde-se: o fado prístino), passou a ser um elemento aglutinador de todos esses géneros musicais que ao longo da fase artística foram sendo introduzidos no âmbito conceptual, cada vez mais alargado, de fado, a par de uma interpretação musical geral atenuadora dos contornos rítmicos dessas novas formas musicais e de uma interpretação vocal a condizer – vide, por todos, o Fado das Tranças Pretas, consagrado por D. Vicente da Câmara, que é… um tango.
Como se disse, depois de, no segundo quartel do séc. XIX, levado pela fidalguia boémia que frequentava as tabernas e lupanares, ter ascendido aos salões da nobreza lisboeta e ter passado para o palco do teatro musical, o Fado entrou na fase artística, que é o fado hoje conhecido do grande público, o fado do espectáculo em palco, o fado de autor e compositor conhecidos, o fado da revista, da rádio, do disco e da televisão, o fado das casas de fado (aliás sucedâneas das antigas tabernas onde se cantava e batia o fado). Saído das alfurjas e das tabernas e reabilitado socialmente, o Fado, do mesmo passo que ia recebendo novas contribuições musicais que foram alargando o seu âmbito estritamente musical, foi granjeando crescente popularidade através do teatro musical e também das casas de fado, que proliferaram em Lisboa a partir dos princípios do séc. XX, primeiro em cafés e cervejarias, depois em recintos exclusivamente direccionados para a apresentação de fadistas profissionais ou semi-profissionais, a que se passou a chamar casas de fado. Foi nesta altura (1900) que surgiram as primeiras gravações em disco (78 rpm), que contribuíram para a projecção das primeiras estrelas do fado, como Maria Alice, Berta Cardoso e Ercília Costa, logo seguidas por Hermínia Silva e Alfredo Marceneiro.
Surge depois o cinema em que o fado assume papel importante, de que se deverá destacar “A Severa”, de Leitão de Barros em 1931, e o mais conhecido filme “A canção de Lisboa”, de 1933. A partir dos anos 40 emerge a figura de Amália Rodrigues, indiscutivelmente a grande intérprete de todos os tempos, justamente reconhecida como a Voz de Portugal. Também ela participou em filmes (i.a., Capas Negras, Fado – História de uma Cantadeira), que ajudaram à sua consagração e à projecção do género fado para além dos pequenos circuitos dos retiros e casas de fado. Estas crescem nos bairros típicos de Lisboa, com serviço de restaurante e espaço próprio para actuação dos fadistas. Proliferam, aos milhares, as gravações de discos por parte de todos os praticantes do género, alcançando o fado inigualável popularidade e fazendo jus ao título de canção nacional.
Nesta fase artística, os poemas narrativos dos primórdios (dos ceguinhos das feiras) foram progressivamente cedendo terreno aos temas líricos e conceituosos, que acabaram por se tornar dominantes. Por fim, qualquer tema passou a ser objecto dos letristas do fado artístico, assim se perdendo a associação (rectius a memória da associação) entre o Fado e os poemas narrativos que estiveram na origem do seu próprio nome.
Foi o fado artístico que elevou ao estrelato as grandes figuras de Alfredo Marceneiro e Amália Rodrigues, indubitavelmente os principais intérpretes de todos os tempos. Graças à sua enorme popularidade e à força e qualidade das suas interpretações, o fado artístico ganhou uma importância sócio-cultural sem paralelo na sociedade portuguesa e projectou-se como “canção nacional”. Amália projectou esta imagem para o estrangeiro, distinguindo-se como a maior intérprete e embaixadora do género. Deverá também salientar-se a figura e a obra de Maria Teresa de Noronha, representante do que se convencionou chamar o fado castiço, como sendo o fado dos primórdios transmitido para a fase artística pelos meios aristocráticos. Neste ramo tradicionalista, outros intérpretes se distinguiram: Vicente da Câmara, João Ferreira Rosa, Teresa Tarouca, Maria do Rosário Bettencourt, José Câmara, Nuno da Câmara Pereira, João Braga, Luz Sá da Bandeira, António Pinto Basto.
Após o golpe militar de 1974, o fado foi injustamente acusado de colaboracionismo com o Estado Novo, chegando os sectores da esquerda política a pedir a prisão de Amália Rodrigues, por alegadamente ter pertencido ou colaborado com a PIDE, polícia política desse regime. Amália, porém, com a sua grandeza de alma, superou os agravos dos “intelectuais” (palavras da própria), redireccionou as suas actuações para o estrangeiro, onde continuou a somar os êxitos que aí sempre obteve, e simultaneamente percorreu em tournée todos os recantos do nosso país, recebendo do povo os aplausos e carinho que este sempre lhe dedicara. E, na verdade, entre os seus admiradores e os portugueses em geral tal afronta pessoal nunca afectou a sua enorme popularidade, de que continuou a gozar até ao seu decesso.
Ulteriormente, os mesmos sectores políticos passaram a usar o fado como veículo transmissor da sua ideologia, introduzindo-lhe letras com carga doutrinária e apologética mais ou menos explícita. Crescem agora os escritos tentando provar que o fado, afinal, não era reaccionário, antes teria sempre possuído um carácter subversivo, marginal e até revolucionário. Este tipo de abordagem, notoriamente inquinada por intuitos de proselitismo político, mas sem qualquer fundamento ou base factual, não havia sido sequer tentado na época de maior efervescência política dos anos 1974-75, mas conhece hoje um incremento inusitado, o que aliás vem acontecendo também em relação a outras manifestações populares tradicionais (há mesmo quem escreva, aparentemente sem ninguém se rir, que o fado é uma canção operária nascida no séc. XIX no Alentejo). Amália Rodrigues, com a sua intuição certeira, afirmou em entrevista a Vítor Pavão dos Santos: “Acho engraçado que toda essa gente que dizia mal do fado a seguir ao 25 de Abril, agora todos cantem o fado…”
Ultimamente, surgiram novas gerações de fadistas que vêm contribuindo para o desenvolvimento do fado, com novas abordagens musicais e poéticas, de que se destacam: Camané, Kátia Guerreiro, Ana Moura, Mafalda Arnault, Mariza, Ricardo Ribeiro, Cuca Roseta, Teresa Tapadas, Carminho, Joana Amendoeira.
O Fado foi reconhecido pela Unesco como Património Imaterial da Humanidade em 2011.
Mais: Rui Vieira Nery, Para uma história do fado, Público/Corda Seca; A Origem do Fado, de José Alberto Sardinha, Tradisom, 2010, contendo quatro CDs com fados primitivos (recolhidos por todo o país) e fados artísticos; v. também a entrevista de José Alberto Sardinha à revista Tempo Livre, da Fundação INATEL, intitulada “Fado – orgulho nacional“.
N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.