Fado corrido – Fado cantado e bailado, por vezes denominado simplesmente por fadinho, disseminado por todo o país, com uma estrutura musical e origens completamente diferentes do Fado primitivo ou lamentoso, este só cantado (não bailado). Apesar dessas diferenças, por que razão se chamou fado ao corrido? Porque o Fado não é, nem nunca foi, um género musical. No seu primórdio, começou por ser um género poético, de carácter narrativo, em que os ceguinhos e demais músicos ambulantes contavam e cantavam casos acontecidos, histórias de vida, desenlaces, geralmente trágicos, de vida (fados) – v. Fado. Por isso, esses fados primitivos eram, do ponto de vista musical, muito tristes.
A par desses fados tristes ou lamentosos, os seus intérpretes das origens, os pobres músicos de rua, cantavam também histórias humorísticas (a vida de um cão, de um frade, de um político ridículo, etc.). Se bem que humorísticas, essas histórias também eram fados, porque também contavam casos de vidas, episódios de vida, ou seja, fados. O mesmo para os duelos cantados entre homem e mulher, de carácter parodístico e frequentemente de sabor picante, por também serem narrativos, na medida em que o duelo conta a história de uma sedução, em que os dois intérpretes vão respondendo um ao outro, mas que começa por um convite, prontamente rejeitado, segue com abordagens de cortejamento e acaba com a rendição da moça esquiva aos dotes sedutores do rapaz.
Mas do ponto de vista musical, esses músicos itinerantes tiveram de encontrar fórmulas mais alegres para estes fados parodísticos, consentâneas com os assuntos tratados. Para isso serviu o passacalle, género musical tradicional então muito em voga na tradição popular. Dadas estas características musicais, este fado, ao contrário do lamentoso, era dançável – e passou efectivamente a ser bailado (por todo o país, entenda-se, visto que, tal como o lamentoso, também o fado corrido não teve o seu berço em Lisboa).
Para avaliarmos a popularidade que o fado bailado alcançou, sobretudo nos ambientes tabernários, importa transcrever uma pequena passagem do livro “Os crimes de Diogo Alves”, de Leite Bastos, que descreve com vivacidade e conhecimento esses meios tabernários de Lisboa e, relativamente a 1839, fala de uma taberninha na Calçada do Duque, conhecida pela tasca da Joaquina do Forno, assim relatando os momentos de folguedo aí vividos: “Ali cantava-se, bebia-se e bailava-se o fandango, o solo inglês e o fado a toda a hora do dia e da noite”.
E então, porque se chamou corrido a este fado bailado? Justamente porque a forma coreográfica maioritariamente adoptada para dançar este fado humorístico foi a roda, com os pares por vezes executando corridas ao ritmo mais acelerado da música, tal como no corridinho – vide. Estas corridas assumiam frequentemente a forma de jogo ou disputa coreográfica, visto que os pares tentavam alcançar e fazer cair o par que os antecedia, o que era muito corrente na tradição popular. O francês Teophile Gautier (séc. XIX), que foi jornalista, poeta e romancista parnasiano, viajou por Espanha e deixou um livro com impressões dessa viagem, no qual escreveu que um dos tipos coreográficos espanhóis era a “danza en corro”, expressão que significa dança de roda em corrida. Foi, pois, esta característica de dança corrida que deu o nome ao que hoje designamos por fado corrido, por ser bailado na fórmula descrita.
Aliás, é notório que a qualificação “corrido” tem procedência coreográfica, como se verifica na obra Cancionero Tradicional del Campo de Ciudad Rodrigo, que, além de incluir alguns corridos nos CDs. que a integram, informa que em algumas povoações da Sierra de Francia (a sul de Ciudad Rodrigo) o fandango é conhecido por corrido. Citamos uma pequena passagem: “Este corrido no es ni más ni menos que un fandango serrano qui en la Herquijuela se denominan corridos”.
O fado bailado ganhou por vezes outras denominações próprias de algumas peculiaridades coreográficas que foi adoptando, como fado batido (este procedente da chotiça – vide), fado em roda, fadinho saltado, fadinho passado, fadinho rodopiado, fado mandado, etc. O fado corrido serviu (e serve) igualmente para cantar ao desafio (vide), enquanto se baila (ou não, consoante a vontade dos circunstantes).
Verificou-se, pois, um fenómeno de extensão terminológica, como tantas vezes sucede na linguagem popular: como o fado estava em moda, qualquer trecho musical (músico-coreográfico) que fosse interpretado nas mesmas circunstâncias de lugar e intérpretes (músicos mendicantes nas feiras, arraiais e tabernas), passou também a ser designado por fado.
Ou seja, mesmo que a música fosse diferente da do fado primitivo, passou a ganhar a denominação de fado – daí que as etiquetas dos discos gravados nos primeiros decénios do séc. XX identifiquem os “fados” neles reproduzidos com os títulos mais variados, denunciadores das suas origens musicais: fado-marcha, fado-valsa, fado-tango, fado-fox, etc. Lembremos o célebre Fado-marcha Maria Vitória, da autoria de Alfredo Marceneiro. Lembremos também a “Menina das tranças pretas”, de D. Vicente da Câmara, que não é outra coisa senão um tango, com os contornos melódicos devidamente suavizados (“à fado”) e com a colaboração da plangência da guitarra portuguesa.
Identicamente ao passacalle, o corrido possui uma estrutura harmónica baseada na alternância entre tónica e dominante sobre a qual os cantadores foram criando novas melodias e variações destas. Estas melodias foram erigidas a padrões musicais onde se podiam e podem introduzir novas letras, desde que respeitadoras da respectiva métrica, segundo a muito antiga técnica do contrafactum. Esses padrões musicais ganharam denominações, algumas associadas aos seus putativos autores, outras decorrentes da letra por que foram, ou são, mais conhecidos.
Todo este circunstancialismo – e sobretudo o facto de serem desconhecidos os autores da maior parte dessas melodias – conduziu a que certos meios classificassem este tipo de fado (corrido maior, mouraria, ou o corrido menor) como “tradicional”, em contraposição ao restante fado, que passou a ser qualificado como fado-canção, considerando-se este como não-tradicional. Esta dicotomia é errónea, porquanto este último tipo de fado (N. B. – não se trata do fado com refrão) é, também ele, de raiz tradicional, estando mesmo o seu primórdio (a que chamamos fado lamentoso por causa dos temas versados e por contraposição ao fado bailado) na origem do Fado, e sendo, por isso, na sua formulação primitiva, um fenómeno poético e musical inteiramente tributário da tradição oral – v. Fado.
A origem musical dos fados corridos deverá situar-se, como se disse, no passacalhe, velho género musical utilizado pelo povo ibérico para tocar e cantar pelas ruas (pasear por las calles), nas tradicionais rondas dos rapazes, o qual veio, no séc. XVIII, a conhecer consagração erudita, pois foi cultivado por vários compositores, como Lully, Gluck e Bach. Mais tarde caído em desuso entre as classes elevadas, o passacalhe manteve-se na tradição popular e, graças à enorme versatilidade da sua estrutura musical (base harmónica com alternância entre a tónica e a dominante, permitindo grande variedade de formulações melódicas), veio a tornar-se um tronco comum de muitos géneros bailados pelo nosso povo, como os fados corridos, a chula, a cana-verde, a rusga, alguns pezinhos, alguns malhões.
Esta fonte comum para todos estes sub-géneros, ou melhor, espécies, tem dado origem a algumas confusões ou estupefações, de que destacamos: César das Neves, numa partitura da Cana Verde da Maia, escreveu como sub-título “Chula”; Rebelo Bonito atribui à chula a origem do fado (corrido, entenda-se); Renato de Almeida assinala as semelhanças entre a chula e o fado; Pedro Homem de Mello afirma, com inteiro acerto, que a Rusga ao Senhor da Pedra (romaria tradicional do concelho de Vila Nova de Gaia) é um “autêntico fado corrido”.
Tal como o fado lamentoso, ou prístino, nunca foi privativo de Lisboa (v. Fado), assim o fado corrido sempre se encontrou disseminado por todos os recantos de Portugal, servindo nas províncias para as seguintes funções: de início, para os referidos cantos humorísticos que os músicos ambulantes interpretavam nas feiras e os rurais repetiam nos seus momentos de convivialidade; o mesmo para os duelos cantados, espécie de desafio que consiste no convite do rapaz sedutor e na recusa da moça tímida mas a final vencida; para o canto ao desafio puro e simples (vide); e também para a bailação.
Habitualmente era dançado em grande roda, com os pares agarrados. Note-se que estamos sempre a falar de uma tradição de dimensão nacional, pois o fado corrido era bailado por todos os recantos do país, como aliás demonstram as recolhas musicais realizadas ainda no séc. XX e as pesquisas de terreno a elas associadas – v. discografia infra. Esta prática bailatória, depois de cessar na sua forma espontânea ou tradicional, transitou para o reportório dos ranchos de representação folclórica, que, às centenas, bailam esses fados corridos por todo o país, sob as mais diversas denominações (v. supra) – poderá com facilidade consultar-se a discografia desses ranchos folclóricos e verificar-se o acerto desta afirmação.
Além dos artistas do palco e da televisão, cuja prática criativa já conduziu, como se disse, à composição de inúmeras melodias sobre o corrido (ou melhor, os corridos, maior, menor e mouraria), o fado corrido continua hoje a ser praticado e vivenciado nas zonas rurais da Beira Alta e Beira Baixa na sua modalidade de canto ao desafio, quer nas festas e romarias (v. g., Senhora dos Remédios, em Lamego), quer nos encontros de cantadores ao desafio que têm vindo a ser organizados nos últimos anos.
Mais: A Origem do Fado, de José Alberto Sardinha, Tradisom 2010, p. 248, 249, 274 a 279, 471 a 473.
Discografia: A Origem do Fado, de José Alberto Sardinha: CD 3 que acompanha esse livro, Faixas 1 (Cetos, Castro Daire), 2 (S. Sebastião, Ilha Terceira), 3 (Boscras, Baião), 4 (Paradela, Miranda do Douro), 5 (Torredeita, Viseu), 6 e 7 (Velas, Ilha de S. Jorge), 8 (Couto de Cima, Viseu), 9 (Dona Maria, Sertã), 10 (Pias, Cinfães), 11 (Ribeira Seca, Ilha de S. Jorge), 12 (Eira Velha, Arganil), 13 (S. Pedro de Paus, Resende), 14 (Janeiro de Cima, Fundão), 15 (Chão da Velha, Nisa); Portugal – Raízes Musicais, BMG/Jornal de Notícias 1997, de José Alberto Sardinha, CD 3, faixa 14 (Castro Daire), CD 4, Faixa 14 (Sertã), Faixa 32 (Sertã); e ainda a faixa 34 (Torres Vedras, Póvoa de Penafirme) do CD 3 que acompanha o livro Tradições Musicais da Estremadura, do mesmo autor.
N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.