Entrudo – Tempo de divertimento colectivo nos quatro dias que antecedem quarta-feira de cinzas. O nosso povo, contudo, alarga esse período, fazendo-o começar logo a seguir ao dia de Reis, altura a partir da qual costumavam sair as contradanças (vide), aos domingos, pelas aldeias ao redor da dos seus intérpretes. Tempo também de licenciosidade autorizada, em que a comunidade permite comportamentos que violam as regras da sua vida corrente e normal.
As principais manifestações musicais desta época eram as cègadas, as pulhas e as contradanças – vide. Na terça-feira gorda, ou na quarta-feira de cinzas realiza-se o enterro do entrudo, dramatização do final do tempo de folia, por vezes com acompanhamento de banda filarmónica interpretando marchas fúnebres ou solenes. A costumeira inclui um testamento, em que se criticam acontecimentos ou personagens locais, terminando com a queima do boneco que representa o entrudo. Além destas manifestações tradicionais do entrudo antigo e das conhecidas brincadeiras e partidas, que variam de região para região, no entrudo armam-se bailes populares durante três ou quatro dias.
A partir do séc. XIX assistiu-se a proibições das condutas violentas que frequentemente se verificavam. Os jornais, então em ascensão de influência, apelavam ao civismo e a celebrações mais urbanas (no sentido de civilizadas). Passaram a ser organizados cortejos com carros alegóricos e batalhas de flores, percorrendo as ruas perante a assistência do povo, à semelhança de Veneza, Nice e outras cidades cosmopolitas. Actualmente, a modernidade introduziu muitas alterações a estas festividades, resultantes dos mega-espectáculos carnavalescos promovidos pela maior parte das localidades, frequentemente com a invasão da música brasileira.
Sobre as origens do entrudo, muitas teorias têm sido avançadas, sendo hoje predominante a opinião de que descenderá das antigas festividades romanas dedicadas a Saturno, provavelmente também das festas Lupercais, ou mesmo das dionisíacas da Grécia Clássica. Salientam-se, para arrimo dessas teorias, as semelhanças com as actuais manifestações carnavalescas, nomeadamente as mascaradas, os excessos, as libações, a inversão das hierarquias e da ordem normal das coisas, as agressões, as injúrias, enfim a violência verbal e física.
Todavia, deverá salientar-se que tais festividades da Antiguidade Clássica tinham lugar em épocas que não coincidem exactamente com o actual Carnaval. Designadamente as Saturnais, apontadas como a principal fonte das manifestações carnavalescas, eram celebradas em Dezembro. Por outro lado, há um aspecto importantíssimo: quase todas as festas populares, em todas as épocas do ano (e não apenas nas proximidades do solstício de Inverno), incluíam, pelo menos desde a Idade Média, máscaras e mascarados, violências, excessos, bebedeiras, inversão de hierarquias, etc. Por último, é forçoso lembrar que estamos à distância de mais de mil e quinhentos anos da queda do Império Romano e que não é possível estabelecer, com esta separação temporal, nenhuma conexão directa entre as festas romanas e a realidade actual.
Não existe nenhum estudo histórico-etnográfico que apresente prova de uma tal filiação directa, pelo que não é aceitável a afirmação de que os actuais festejos carnavalescos procedam das Saturnais, das Lupercais ou de quaisquer outras manifestações da Roma Antiga. Trata-se, pois, de uma afirmação gratuita que só se pode explicar pela tendência, que está em moda, de procurar descortinar, rectius inventar, sinais de paganismo em toda e qualquer tradição popular. Mais correcto e razoável será procurar as origens do Carnaval na Idade Média e nas profundezas do psiquismo colectivo, ou, se quisermos, do substracto mental primitivo do povo europeu.
Mais: Tradições Musicais da Estremadura, Tradisom 2000, p. 175 a 205, de José Alberto Sardinha; Origens do Carnaval – com passagem pelo carnaval de Torres Vedras, de José Alberto Sardinha, em finalização.
Discografia: Faixas 14 a 19 (Anços, Sintra; Livramento, Mafra; Póvoa de Penafirme, Torres Vedras; Casalinho das Oliveiras, Lourinhã; Torres Vedras; Paúl, Mafra) do CD 2 que acompanha este livro; Recolhas de Armando Leça, inéditas, arquivo RDP, bobine AF-538 (Malpica do Tejo, Castelo Branco).
N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.