José Alberto Sardinha – entrevista

 

O nosso ilustre entrevistado tem um percurso de vida muito interessante e singular. De ascendência beirã, nasceu em Angola, de onde regressou com a família ainda criança, cresceu e estudou em Lisboa e reside em Torres Vedras, onde desenvolve a sua actividade profissional. É advogado de profissão e etnomusicólogo de coração.

É um beirão dos quatro costados: os seus avós eram todos naturais da Beira-Serra, concelhos de Covilhã, Fundão, Seia e Almeida. Seu pai foi para Angola em 1927, lá se estabeleceu como fundador e proprietário da Agência Comercial de Benguela (empresa de import-export, como hoje se diria), por lá fez fortuna. Viveu mais de quarenta anos em Benguela e recebeu medalha da Câmara Municipal evocativa desse facto.

José Alberto Sardinha fez a escola primária em Lisboa (a família regressou à metrópole em 1960), frequentou o Liceu D. João de Castro ao longo dos sete anos liceais, distinguindo-se sempre como melhor aluno do seu ano, no então chamado Quadro de Honra. Já na Faculdade de Direito veio a envolver-se no movimento académico, nas lutas por um ideal de sociedade livre, justa e democrática. Porém, os fervores políticos da juventude viriam a acalmar quando, ao abraçar a sua profissão, se viu confrontado com a realidade, com os problemas concretos das pessoas e a complexidade da natureza humana.

Terminado o curso, optou por abandonar o bulício da capital e, por casamento, foi residir para Torres Vedras. Tem três filhos e um neto. Possui escritório na cidade de Torres Vedras, aí exercendo, há praticamente quarenta anos, a chamada advocacia de prática isolada (em vias de desaparecimento, por força do crescimento das sociedades de advogados). Tem exercido o foro centrado na comarca de Torres Vedras, mas também nas de Mafra, Lourinhã, Lisboa e outras. Graças à sua probidade e competência, tem granjeado justa fama de causídico brilhante, sendo hoje considerado uma referência ética e profissional do foro torreense e não só. A par da sua profissão, é proprietário, bem como sócio-gerente da sociedade imobiliária que detém o conhecido Páteo Amarelo, no centro histórico de Torres Vedras, sendo hoje pessoa respeitada na sociedade torreense, que justamente lhe reconhece as qualidades de carácter, honestidade e humanidade.

Apesar do valor incontestável da sua carreira forense, não foi porém o Direito que mais o notabilizou. Foi sim a sua vasta e profunda investigação etnomusical, resultante de um trabalho de campo intenso por todas as províncias do país, ao longo de mais de quatro décadas, desde que era ainda estudante universitário. Conhece Portugal de lés a lés, como poucos. Conhece pessoas por todos os recantos, de todas as classes sociais. Não as importantes, políticos, autarcas, sociólogos ou outros, mas sim pessoas do povo que colaboram com a sua pesquisa e com quem mantém relações de amizade, cordialidade e contacto regular.

Nasceu-lhe esta paixão pela música popular tradicional portuguesa no Coro da Juventude Musical Portuguesa, onde teve a felicidade de encontrar o maestro Francisco d’Orey que fez despertar o gosto por essa música em toda uma geração de músicos e entusiastas que se vieram a distinguir nessa área. O reportório do coro era ecléctico, com música erudita, sobretudo renascentista e barroca, mas também com música popular, sobretudo com harmonizações de Fernando Lopes Graça.

Em 1972, com alguns elementos desse Coro, participou numa primeira recolha no Alentejo, em Santo Aleixo da Restauração. Seguiram-se outras recolhas noutras zonas do país. Ainda nos anos 70, começou a encarar a actividade de recolha musical numa perspectiva científica, comprou um gravador de alta-fidelidade e concebeu um plano de recolha musical por regiões e províncias, de modo a obter representatividade geográfica e genuinidade etnográfica. Correu as aldeias do país gravando e entrevistando as pessoas com a afabilidade natural que o caracteriza. Com notável perseverança e dedicação, realizou recolhas musicais com regularidade ao longo de mais de quarenta anos, detendo hoje em dia o mais vasto espólio gravado de música portuguesa de tradição oral, documentado com fotografias e também com filmes, de sua autoria.

Estudou as tradições populares portuguesas com profundidade e escreveu obras de referência, de que deverá destacar-se: Tradições Musicais da Estremadura, Tunas do Marão e A Origem do Fado. Na sua biografia poderá consultar-se a sua restante bibliografia. Importa destacar a edição discográfica de 1997, intitulada “Portugal, raízes musicais”, colectânea nacional de 6 CDs com músicas recolhidas em todas as províncias, do Jornal de Notícias, que obteve grande impacto pela qualidade dos registos seleccionados, pela vastidão geográfica e pela tiragem elevada.

Merece especial destaque o facto de José Alberto Sardinha ter realizado toda esta vasta obra de recolha por todo o país, esta obra de investigação no terreno, de estudo e divulgação, sem qualquer apoio, sem subsídios, custeando tudo do seu próprio bolso, sem nada ganhar com a edição das suas obras. Se isto não é amor à Arte, não sei o que será! É um caso feliz de alguém que tem rendimentos pessoais e do exercício da sua profissão que lhe permitem disponibilidade económica para se dedicar graciosamente à cultura portuguesa. Todos nós, portugueses, devemos estar-lhe profundamente gratos por tão altos serviços à nossa cultura popular e pelo inestimável legado que deixa às gerações vindouras através de um espólio notável de registos sonoros, que representam memórias musicais que se teriam perdido para sempre, não fora a sua entrega admirável a esta causa.

Estranhamente, apesar do seu enorme valor cultural, a obra e os estudos de José Alberto Sardinha sobre a etnografia musical portuguesa não têm beneficiado do destaque e projecção que deviam merecer. Por desleixo, por desconhecimento, mas lamentavelmente muitas vezes por outras razões menos edificantes, esquece-se o seu nome, omite-se a sua importância. E, no entanto, a sua investigação no terreno, as suas recolhas musicais por todo o país, a sua obra escrita ergue-se sem paralelo na etnografia musical portuguesa.

Sendo nosso propósito divulgar o que de melhor se faz nestas matérias, é nosso dever contribuir para fazer reverter esta lamentável situação e para um melhor conhecimento da obra deste investigador, através dos meios modernos da internet. Para tal, publicamos em página anexa um resumo da sua biografia, bibliografia e discografia.

Através da leitura dos seus livros, é possível constatar a extensão e variedade das matérias etnográficas por ele abordadas, sempre relacionadas com as tradições musicais, objecto central do seu estudo:

  • Cantos de trabalho: aboio, monda, ceifa, malha, sachada e desfolhada do milho, vindima, pisa da uva, apanha da azeitona;
  • Romanceiro tradicional;
  • Cânticos do ciclo da Natividade: ao Menino Jesus, Janeiras, Reisadas;
  • Entrudo: cègadas, contradanças, pulhas;
  • Almas do Purgatório: encomendações e amentação;
  • Procissões dos Passos do Senhor e canto da Verónica;
  • Serração da velha;
  • Semana Santa e Martírios do Senhor;
  • Aleluia da Páscoa e compassos pascais;
  • Festividades do Espírito Santo e suas tradições populares;
  • Corpus Christi: festividade, procissões, danças populares;
  • Santo António e S. João;
  • Círios e loas da Estremadura;
  • Os bailes tradicionais;
  • Coreografia popular;
  • Instrumentos musicais populares;
  • Implantação rural da guitarra portuguesa;
  • Viola portuguesa, especialmente a viola campaniça;
  • Tunas rurais: história, funções, reportório e instrumentos;
  • Polifonia vocal popular: Minho, Trás-os-Montes, Douro e Beira Litoral, Beira Alta, Beira Baixa e Alentejo (cante);
  • Origem do fado, como prolongamento do romanceiro tradicional.

Tivemos o privilégio de conseguir contactar e entrevistar o Dr. José Alberto Sardinha, que muito gentilmente nos concedeu algum do seu assoberbado tempo, e conseguimos também garantir colaboração da sua parte para o Portal Terra Mater, naturalmente condicionada às suas limitações de tempo, que oportunamente iremos disponibilizando nesta página. Destacamos desde já a enciclopédia de tradições populares que elaborou, que consideramos de enorme valia e grande interesse prático para quem procura saber mais sobre esta matéria e que estará a partir de agora gratuitamente nesta página, à disposição de todos os que se interessam pelas tradições populares portuguesas e do público em geral.

Desde já aqui deixamos o conteúdo da agradável entrevista, no seu tom cordial e simpático, que consideramos esclarecedora, desassombrada e quiçá até polémica. Como sempre deixamos ao leitor a liberdade de ajuizar por si próprio.

Terra Mater – Antes de mais, muito obrigada por nos receber. É sabido que tem um vasto historial de recolhas musicais por todo o país e produziu ao longo dos últimos trinta anos vasta obra sobre as tradições populares portuguesas. Donde lhe veio essa paixão?

Resposta:- Tive a felicidade de integrar, desde o ano de 1970, o Coro da Juventude Musical Portuguesa, então dirigido por Francisco d’Orey, que era um maestro de grande sensibilidade musical e que tinha um reportório eclético, com música polifónica renascentista e barroca, mas também com música popular portuguesa, na sua maioria harmonizada por Lopes Graça. Além disso, o Francisco tinha participado nalgumas recolhas com Michel Giacometti e incutiu-nos o gosto pelo contacto directo com a música popular que interpretávamos em concerto, deslocando-nos aos seus locais de origem e escutando directamente as pessoas que a cantavam. Foi assim que em 1972 estivemos alguns dias em Santo Aleixo da Restauração, onde tivemos oportunidade de ouvir nas sociedades, tabernas, o canto alentejano que na altura ainda se cantava espontaneamente. Daí me ficou este bichinho. Aliás, não fui só eu. Toda uma geração ficou marcada por essa influência do Francisco d’Orey e muitos vieram a distinguir-se nas mais variadas áreas musicais, quase todas relacionadas com a música popular: maestros, músicos, compositores, críticos musicais, etc. Eu abracei a investigação etnomusical, primeiro no grupo Almanaque, ainda no seio da Juventude Musical, e depois de 1982 só com a companhia de alguns amigos, como o Vítor Reino, a Ana Rita e a minha irmã Olinda.

TM – Mas como é que organizava essas recolhas? Aparecia nas aldeias assim, sem mais nem menos e perguntava quem é que ali tocava e cantava, era assim? 

R – Não era propriamente assim, porque tudo requer organização e preparação. Já nos longínquos tempos do Almanaque, eu deslocava-me às aldeias uns meses antes a estabelecer contactos, para que, mais tarde, meses depois, quando chegasse a altura das gravações, tudo corresse bem e com eficiência. Pude contar com o apoio local dos sacerdotes e dos professores primários que, até finais dos anos 90, eram pessoas muito ligadas às comunidades rurais e conheciam bem os intérpretes populares. Viviam nas aldeias, estavam inseridos nessas comunidades. Devo-lhes muito e a cultura local também.

TM – Posso imaginar que além desses contactos prévios, também haveria certamente alguma pesquisa prévia para o conhecimento mais aprofundado da música de cada região, ou não?

R – Claro que sim. Isto não é só chegar a uma aldeia e pôr o gravador a trabalhar. É preciso saber o que se procura, é preciso estudo prévio. Na altura, não havia internet e não existia a facilidade de acesso à informação que há hoje. Tive de estudar o que outros investigadores tinham colhido no terreno e, nessa altura, a recolha do Giacometti era a mais recente, mais conhecida, mais acessível. Por isso, de início segui muito de perto as pisadas do Giacometti, como aliás ele já fizera, vim a perceber depois, em relação ao Armando Leça.

TM – E esse estudo dava-lhe os conhecimentos necessários para conseguir uma boa recolha?

R – Era muito importante, mas para mim não era suficiente. Tornava-se necessário estudar as tradições populares que estavam subjacentes às manifestações musicais tradicionais, para as conhecer melhor e procurar contextualizá-las.

TM – E como fez isso?

R –  Nos anos 70 e 80 havia uma escassíssima produção de estudos etnográficos, comparativamente com os dias de hoje. E as obras antigas estavam esgotadas havia muito tempo. Como não podia perder dias e dias, ou semanas, na Biblioteca Nacional, porque a minha actividade profissional, como advogado, era muito absorvente, tornou-se necessário comprá-las nos alfarrabistas, algumas a preços exorbitantes. Frequentei com regularidade os alfarrabistas de Lisboa, Porto e Coimbra e formei uma biblioteca que terá hoje milhares de volumes, o que me permitiu ler e estudar em casa, nas horas livres da profissão.

TM – Isso hoje parece irreal… 

R – Mas era assim naquele tempo. Aquilo que hoje está à distância de um clique, naquele tempo era de difícil conhecimento e localização. Os próprios alfarrabistas não tinham os seus ficheiros organizados, como têm hoje, que está tudo digitalizado. Só para lhe dar um exemplo: só consegui comprar os livros de Armando Leça em 1983 e só então, portanto, é que realizei a dimensão geográfica das suas recolhas e os locais concretos em que ele as tinha realizado em 1939-40. Poderá dizer-se: mas podia ter lido antes esses livros do Leça. Claro que podia. Mas tinha acabado o curso em 1975, casei-me, tive filhos, atravessei períodos de trabalho profissional muito intenso para me afirmar como advogado e implantar o meu escritório. O tempo não é elástico, não dá para tudo… É curioso, mas consegui comprar os cancioneiros do Virgílio Pereira (de Arouca, de Cinfães e de Resende) antes dos livros do Armando Leça. Eram as vicissitudes daquele tempo e de quem não se dedicava de tempo inteiro a essa matéria…

TM – Voltando às suas recolhas, como é que se processam as coisas no terreno, tem critérios próprios para selecção das músicas, ou grava tudo o que lhe aparece da boca do povo?

R – Claro que tem de haver uma selecção, baseada naturalmente num critério de escolha. De contrário, se gravarmos tudo o que nos aparece, corremos o risco de gravar o hino nacional cantado por alguém que nos garante que foi seu pai ou seu avô o compositor… Ou um fado da Amália, como já vi acontecer na televisão, depois de ser pedido a uma velhota de Trás-os-Montes que cantasse “qualquer coisa”… Ora, o critério de selecção tem de resultar de vários factores: do estudo prévio das tradições musicais do país e, concretamente, da região para onde vamos, do estudo das recolhas anteriores, do conhecimento do que é a essência e a dinâmica das tradições populares,da nossa própria sensibilidade e intuição, da experiência de campo, dos nossos próprios conhecimentos musicais, concretamente de música popular portuguesa e até de música ligeira, de música religiosa, de História da Música e de composição musical, das formas musicais eruditas ao longo dos séculos, etc. etc.

TM – Já referiu a escassez do seu tempo, mas nem é preciso ser bom observador para constatar que, dada a profissão absorvente que tem e dada a dimensão da sua obra, de algum modo conseguiu “inventar” tempo para dedicar às suas pesquisas. Como foi isso possível?

R – Bem, de início, dediquei sempre quinze a dezoito dias das minhas férias de Verão para fazer as recolhas em determinada zona do país, onde me deslocava previamente, com muita antecedência, para preparar tudo, como disse. Naquela altura, a maioria dos contactos era feita por carta e até, por vezes, as próprias marcações das gravações. Mais tarde comecei a ir ao terreno em fins-de-semana alargados, conforme podia. E assim vim a formar um arquivo sonoro de grandes dimensões.

TM – De todo o país?

R – De todo o país excepto da Madeira, onde nunca fiz trabalho de campo, embora tenha gravações feitas na Expo-98, em que fui coordenador do ciclo Sons da Tradição.

TM – Há tantos anos e com esse ritmo, deve ter palmilhado o país todo…

R – Conheço Portugal de lés a lés. Adoro o meu país e tenho orgulho em ser português.

TM – Posso perguntar-lhe se esse arquivo está organizado e salvaguardado?

R – Está organizado por províncias e por ordem cronológica. A sua digitalização está a ser feita graças ao empenho e generosidade do amigo José Manuel Fortes, o melhor dos técnicos de som, que também está a organizar uma base de dados.

TM – Percebe-se que tudo isso resultou de uma enorme dedicação, de muito tempo despendido, e de grandes sacrifícios pessoais…

R – Tudo isto foi feito com e por paixão, mas comportou também, como será fácil de perceber, uma dose de sacrifício. Não estou a romantizar, mas muitas recolhas foram feitas debaixo de frio e de neve, outras a engolir o pó dos caminhos de terra batida em tardes ardentes de calor… E sem ar condicionado no velho jipe… Bem podia ter optado por estar estendido a banhos nas salsas ondas da Ericeira…

TM – Aparentemente, tanto sacrifício e dedicação nunca mereceram da parte das entidades competentes qualquer reconhecimento?

R –  Nunca. Nada.

TM – Tem alguma explicação para isso?

R – Bem… Por um lado, o Estado trata a cultura popular como coisa inferior, do tipo cultura do garrafão. Não conhecem nem dão importância à cultura popular. O aparelho do Estado, no que à cultura diz respeito, foi assaltado por “parvenus” que não sabem dimensionar correctamente a cultura popular em relação à música erudita e que se deslumbram com a música “clássica” que nunca tinham frequentado, nem sabem bem o que é. Por outro lado, sabe, eu não pertenço a seitas nem a capelinhas de promoção do género das confrarias do elogio mútuo. Logo, o meu trabalho de investigação não tem exposição nem reconhecimento nos meios influentes da política…

TM – Mas mesmo com os livros que foi escrevendo… e a importância que têm para a divulgação das nossas tradições populares?…

R – Sim, mesmo assim.

TM – Essa poderá ser uma realidade ao nível dos sectores de influência, mas é sabido que o mesmo não acontece junto das populações e das entidades locais que nutrem por si e pela sua obra o maior respeito e admiração. Como se poderá explicar então que, tendo escrito tantos livros de extrema importância para a divulgação das tradições populares, essa situação se mantenha?

R – Sabe… por um lado, não nasci em bicos de pés. Por outro, a minha obra não tem beneficiado de grande promoção, talvez por culpa minha. Tenho  uma actividade profissional intensa, tenho muito tempo dedicado a pesquisar e a escrever e, portanto, falta-me tempo para a dita promoção, se é que isso deva ser feito por mim…

TM – Mas então, como conseguiu editar tanta coisa?

R – Há aí duas partes nessa pergunta. Primeiramente, o tempo para escrever…

TM – Sim, o tempo… intriga-me como conseguiu conciliar tudo…

R – Bem, o tempo organiza-se. Escrevo muito de noite e beneficio da biblioteca que tenho. Estando em casa, tenho os livros para consulta à mão de semear…

TM – Mas eu referia-me mais exactamente à edição dos livros, do investimento que é preciso para tal e do retorno, ou não, desse investimento…

R – Bem, isso é matéria que compete à editora que tem editado os meus livros. O Zé Moças, director da Tradisom, tem conseguido patrocínios que têm viabilizado a edição dos meus livros. O patrocínio não é um subsídio. É um compromisso de compra antecipada de um certo número de livros, o que viabiliza a edição, ou pelo menos diminui o risco do investimento. Tudo isso tem sido tratado por ele. Mas quero aqui ressalvar uma situação de reconhecimento, que não quero omitir: a edição do livro A origem do Fado beneficiou do patrocínio (repito: compra antecipada de livros) por parte da Fundação Inatel. Certamente como reconhecimento da minha colaboração graciosa de trinta anos, mas também fruto da sensibilidade cultural do seu presidente da altura, o meu ilustre colega de profissão e amigo Dr. Vítor Ramalho. (NOTA:- Já depois de revisto o texto desta entrevista, recebemos do Dr. José Alberto Sardinha a informação de que fez cessar a sua colaboração de quinze anos com a Tradisom).

TM – Voltando ao tema das recolhas: como vê o trabalho dos colectores que o antecederam?

R – Peço-lhe desculpa, mas não vou responder a essa questão porque ela carece de ser tratada através de um estudo cronológico e comparativo que não é possível fazer numa simples entrevista como esta.

TM – Mas gostava de algumas palavras suas sobre a importância da recolha de Armando Leça, nos anos 1939-40…

R – Armando Leça realizou uma recolha importantíssima e precursora, embora pouco intensiva do ponto de vista geográfico, mas temos de atender às dificuldades de deslocação naquela época e ao pouco tempo que lhe foi concedido pela Comissão dos Centenários… É uma tristeza o esquecimento em que caíu. Em 1982, quando fui convidado pela Antena 2 para fazer o programa Cancioneiro Popular, fiz sentir ao realizador Bernardino Pontes a necessidade de serem encontradas as gravações, as quais, por essa época, estavam dadas como perdidas nas instalações da Emissora Nacional. Acabou por ser encontrada uma cópia em bobines, feita por um funcionário zeloso, que, depois de recuperada, foi por mim estudada e transmitida na íntegra entre 1983 e 84. Gostei muito de ter resgatado a obra de Armando Leça do esquecimento em que se encontrava, até porque me identifico muito com o espírito dele na pesquisa de campo, classificando-se como um músico caminheiro, que percorreu o país em busca das raízes musicais do povo português.

TM – E a obra de Michel Giacometti?

R – Michel Giacometti tem beneficiado de uma publicidade que contrasta com o silêncio sobre as pesquisas de Armando Leça e Virgílio Pereira, ambas de enorme valor. Tenho vontade de escrever uma história da investigação etnomusical no nosso país, onde analisarei esse fenómeno. Para já, o que é possível dizer é que aquilo que se tem considerado como as grandes descobertas de Giacometti foram, na verdade, descobertas de Armando Leça ou pelo menos já estavam nas recolhas deste. Falo, por exemplo, da polifonia de Lafões, do Leva-leva dos pescadores de Portimão, do cantar à pedra, a moda das segadas no nordeste trasmontano, o pandeiro da mesma região, o canto das maçadeiras ao ritmo dos maços, a polifonia minhota, a gaita-de-foles na região de Coimbra, o adufe na Beira Baixa, a polifonia vocal da Cova da Beira, a zamburra na zona raiana da Beira Baixa e Alto Alentejo, os bombos do Fundão, etc.

TM – Se me permite, colocar-lhe-ia agora outra questão: como encara a actividade dos ranchos folclóricos? Considera-os uma adulteração da verdade etnográfica, como muitas vezes se diz?

R – O problema dos ranchos de representação folclórica é complexo e merece alguma reflexão, sobretudo histórica. Primeiramente, não há qualquer dúvida de que a tradição bailatória antiga, dos bailes espontâneos tradicionais, cessou entre os anos 60 e 80. Portanto, os ranchos tornaram-se os depositários dessa tradição músico-coreográfica. Mas a forma como o faziam levantava as maiores reservas. Sou de uma geração que se formou a olhar com desconfiança para os ranchos. Por um lado, pela influência do pensamento de Lopes Graça, que era muito crítico e ácido em relação aos ranchos. Por outro lado, porque a realidade da esmagadora maioria dos ranchos confirmava as razões da crítica. As suas prestações em palco eram uma adulteração da vida, da música e dos costumes reais do nosso povo, com trajos inapropriados e uniformizados, com musiquinhas saltitantes e com interpretações em andamento demasiado rápido.

TM – Essa adulteração tem sido atribuída ao Estado Novo… O que tem a dizer sobre isso?

R – Isso são histórias da Carochinha que a antropologia marxista gosta de alimentar para enganar tolos e que os ranchos adoptaram alegremente para ocultar as culpas próprias nesse processo de adulteração da verdade etnográfica. Você consegue imaginar o Salazar e o António Ferro reunidos numa caverna tenebrosa para decidirem a melhor forma de fazerem maldades ao povo e falsearem as tradições e os costumes populares? Não imagina, pois não? Porque é uma rapariga inteligente e pensa logo que eles tinham mais que fazer do que perder tempo com isso… Essa abordagem é apenas uma visão conspirativa, do tipo do capuchinho vermelho a ser atacado pelo lobo mau, um conto para crianças.

TM – Mas então… Qual é a explicação?

R – Então temos uma verdade muito simples: a grande maioria dos ranchos quis dar de si e da sua região, ou freguesia, uma imagem diferente das outras, inédita, com tradições únicas e formidandas. E vai daí, toca de inventar coreografias, trajos, até músicas e textos poéticos para as respectivas letras… Marchinhas, maravilhas e fantasias… Era um cenário desolador!

TM – Mas isso já mudou…

R – Sim, em grande parte, felizmente, mudou…

TM – E quais as razões que provocaram essa mudança?

R – Houve vários factores que contribuíram para isso. Por um lado, a Federação de Folclore que, apesar de problemas e defeitos próprios que não vêm agora ao caso, exerceu uma acção de exigência etnográfica, que foi globalmente positiva. Por outro lado, a partir dos anos oitenta, os ranchos receberam uma nova geração de membros, já com uma certa consciência do que devia ser a representação folclórica. Por fim, há um magistério pessoal de que pouco se fala, mas que foi fundamental: a acção desempenhada por Tomaz Ribas e pelo INATEL. Por sua iniciativa, surgiram os estágios para requalificação de dirigentes de ranchos. Eram estágios nos hotéis do INATEL, um pouco por todo o país, que duravam cerca de dez dias, ou às vezes apenas três, um fim-de-semana alargado, e que consistiam em palestras participadas, a cargo de especialistas em várias matérias: coreografia, trajos, música, literatura oral e romanceiro tradicional, enfim, costumes e tradições populares. Entre 1986 e 1995 colaborei intensamente com o professor Tomaz Ribas nessas reuniões e palestras de consciencialização e posso dizer que se tratou de uma contribuição importantíssima para o aumento de qualidade dos ranchos. Por fim, a equipa era assim constituída: Tomaz Ribas na área coreográfica e como moderador geral, Madalena Ferrajota no trajo, eu na música e instrumentos musicais, Pedro Ferré na literatura oral e Mesquitela Lima na teorização da antropologia cultural. A mensagem produziu efeitos e rapidamente se espalhou entre os ranchos a preocupação com a qualidade da representação folclórica. A figura e a obra de Tomaz Ribas neste domínio tem sido pouco valorizada, mas eu, que fui um colaborador próximo, estou cá para dar o meu testemunho do que se passou e da importância que a sua acção teve na reabilitação dos ranchos. Seria uma grave injustiça não lembrar o seu nome neste processo de requalificação ou reciclagem, como ele dizia, dos ranchos. Muitos deles, após frequentarem esses estágios, mudaram completamente a sua visão, mudaram os trajos, mudaram os instrumentos musicais, etc. Foi importantíssimo.

TM – E afinal qual é o panorama actual?

R – Hoje há efectivamente ranchos muito bons, outros assim-assim, outros, ainda muitos, que permanecem com os velhos defeitos de má representação folclórica. Só o facto de estes ainda manterem essa má qualidade, demonstra a falsidade de atribuição das culpas ao Estado Novo. Quarenta anos de democracia depois, já devia ter sido tempo suficiente para se libertarem do jugo ominoso da política maléfica e obscurantista, como dizem, mas afinal não. Persistem, justamente porque o mal não era esse. Os vícios permanecem e prendem-se com a ignorância e a vontade de ter na sua terrinha um produto folclórico único e maravilhoso. Alinda-se a indumentária, arrebica-se a música, fantasia-se a coreografia. Depois, há também a despreocupação, o deixa-andar, por vezes o espírito excursionista.

TM – Volto a insistir porque, na realidade, são atribuídas culpas ao Estado Novo não apenas nos meios académicos, mas generalizadamente no seio do próprio movimento folclórico. como se fosse uma verdade absoluta…

R.- Claro que sim, porque isso convém a todos. A uns para fazerem politiquice, a outros para se desculpabilizarem daquilo que os ranchos fizeram de si próprios… Essa ideia peregrina partiu de intelectualóides empenhados politicamente, desconhecedores da realidade que dizem analisar e cujo único objectivo é fazer politiquice. As universidades transmitem esta mentalidade e esta perspectiva. Não interessa investigar com objectividade, mas sim introduzir factos políticos a despropósito, mesmo que não tenham nada a ver com a música de que se está alegadamente tratando… É absolutamente ridículo como se citam coisas políticas completamente a despropósito, mas há muita gente a fazer carreiras académicas à custa dessa visão. Aliás, pode-se mesmo dizer que quem não adoptar essa narrativa, não é um cientista social, entre aspas, que se preze. Para se ser cientista social, com aspas, é necessário contextualizar os fenómenos, também com aspas. Ora, contextualizar para esses senhores é politizar e assim chegamos àquilo a que eu chamo a bolchevização do folclore, que é no fundo a aplicação da vulgata marxista a tudo o que mexe, agora, depois da queda do muro de Berlim, em roupagens versáteis e mais disfarçadas, género esquerda caviar. Há coisas ridículas nesta matéria. Intelectualmente ridículas – e risíveis -, mas muito sérias porque o assunto devia merecer respeito e porque quem não afinar com a orquestra, não tem elogios, não beneficia de investigações com subsídios europeus, não alcança doutoramentos, não tem lugares na carreira académica. Mas isso é problema deles, porque eu não dependo de carreiras, de amiguismos, de filiações, de jogos ou de influências, nem dos dinheiros públicos.

TM – Vejo que preza a sua independência…

R.- Muito. Uma das coisas boas que tem a advocacia é a independência. Só dependemos de nós próprios, do nosso trabalho, da nossa honestidade, da nossa competência, do nosso mérito. Na investigação etnomusical que realizei, nunca dependi do Estado para nada, nem de subsídios, nem de fundos europeus. Fiz todas as minhas recolhas, ao longo de quase quarenta anos, com o dinheiro do meu bolso, paguei o material com o meu dinheiro, os hotéis, as deslocações, tudo… Só o gravador Nagra-IV S que comprei em 1980, custava nessa altura a módica quantia de 2.000 contos… Nunca tive qualquer apoio do Estado, nem qualquer subsídio, para o que fosse… Isso está reservado para os que têm vocação e habilidade para andar na babugem dos dinheiros públicos, para sugar o erário público, que é pago com os meus impostos e os dos portugueses…

TM – Peço desculpa, mas há pouco interrompi-o e acabei por não colocar as minhas dúvidas. Se percebi bem, tinha uma posição bastante crítica em relação aos ranchos folclóricos, mas acabou por colaborar com eles. O que o fez mudar de ideias?

R – Tudo partiu exactamente da personalidade singular do professor Tomaz Ribas e da convicção e entusiasmo que imprimia aos projectos que abraçava. Em 1982, ainda inserido no Almanaque e na Juventude Musical, organizei a Quinzena de Etnomusicologia que, entre outras iniciativas, contou com uma mesa-redonda que juntou João de Freitas Branco, Fernando Lopes Graça, Tomaz Ribas, Ernesto Veiga de Oliveira e Bettencourt da Câmara. Foi nessa altura que fiz conhecimento com a personalidade fascinante do professor Tomaz Ribas. Pouco tempo depois, convidou-me para colaborar no tal projecto de reabilitação dos ranchos folclóricos, de reciclagem como ele dizia na brincadeira, mas hesitei. Expliquei-lhe as reservas que tinha a esse mundo dos ranchos e que não estava interessado em perder tempo com aquilo que considerava ser a deturpação da música do povo português. Ele não desistiu e fez-me ver que era necessária a minha colaboração para ajudar a mudar esse estado de coisas e que o projecto dele era exactamente ajudar a melhorar essa situação. Era muito insistente e convincente.

TM – E aceitou…

R – Acabei por aceitar o desafio.

TM – E então, como correu essa experiência?

R – Então tive a oportunidade de lidar directamente com um fenómeno que desconhecia. Mas sobretudo o que me surpreendeu foi a enorme vontade de aprender manifestada pelas pessoas que participavam nesses estágios de reabilitação, se assim podemos chamar. Na sua maioria, tinham fraca preparação, mas muito interesse em melhorarem os seus ranchos, em aprenderem como fazê-lo. Notei isso desde logo na sequência dessas próprias palestras de esclarecimento, em que os folcloristas presentes faziam perguntas, colocavam dúvidas, manifestavam esse interesse em aprender e melhorar. Mas também depois. Ainda hoje recebo muitos telefonemas pedindo-me esclarecimentos sobre dúvidas, ou a minha opinião sobre determinadas matérias. Essa é, aliás, uma das razões que me levaram a escrever um pequeno dicionário prático dos temas da tradição popular, de fácil consulta e sem grandes teorizações, e que me prontifico a pôr ao vosso dispor, para a página da Terra Mater.

TM – E nós ficamos-lhe profundamente gratos pela confiança e estamos certos de que será um contributo de grande valia para os nossos leitores. Mas voltando atrás: continua a manter contactos regulares com os ranchos folclóricos?

R – Regulares, propriamente, não, mas colaboro em palestras e outros eventos para que me convidam com assiduidade. Por outro lado, tenho até contado com a colaboração, nas minhas pesquisas de campo, de muitos dirigentes e elementos desses ranchos, conscientes da importância dessas pesquisas, interessados em que as tradições da sua terra sejam estudadas e valorizadas.

TM – Agora outro assunto. Aparentemente, movimenta-se entre dois mundos: os que o admiram e respeitam, que reconhecem o mérito do seu trabalho e com quem partilha experiências gratificantes, e o meio académico da etnomusicologia que, segundo se percebe, não reconhece a importância da sua obra. Encontra alguma explicação para isso?

R – Sabe, muitos académicos da etnomusicologia, coitados, julgam-se superiores aos outros seres humanos pelo simples facto de terem um canudo. É verdadeiramente uma mania do Portugal dos pequeninos, esta de pensar que ter um curso confere sabedoria e superioridade sobre os restantes mortais. E então agora, numa altura em que as licenciaturas estão em saldo, em que os licenciados dão erros de ortografia e de sintaxe, com os quais não passariam no exame da quarta classe do meu tempo… A posição deles é mais ou menos esta: “essa coisa de andar a fazer recolhas pelas aldeias é matéria para os curiosos. Nós, os sábios, não servimos para isso, não precisamos de sujar os sapatos. A nossa sapiência serve para outras coisas mais elevadas, interpretar os dados que nos são fornecidos por essas fontes e por outras que nos interessam. E só nós é que sabemos”. Isto é muito engraçado, porque a minha geração, aliás como todas as anteriores, que tiveram grandes investigadores destas matérias, desprezava aqueles que nunca faziam pesquisa de campo, mas que teorizavam sobre o que não conheciam, chamando-lhes mesmo, pejorativamente, etnógrafos de gabinete ou de sofá, em inglês arm-chair ethnographs, a quem Jorge Dias veio a chamar antropólogos de andar por casa. Agora, porém, os valores estão invertidos. Esses etnógrafos de sofá passaram a sábios e os que sujam as botas no campo são uma espécie de lunáticos românticos, quando não mesmo violadores da privacidade das populações rurais. É espantoso ao que se desceu! Até chegam a considerar que é assunto inferior a gravação da música nas aldeias. No fundo, querem deixar morrer e esquecer a cultura tradicional. E o que é mais interessante é que, na verdade, nem sequer a conhecem e mostram ignorância crassa na abordagem de muitas matérias etnográficas. Com muitos deles, é caso para aplicar o velho aforismo popular “Sob a capa de letrado, muito asno disfarçado”. Outros há que não. Têm escritos válidos e uma abordagem séria. Merecem todo o respeito.

TM – Quer com isso dizer, que o meio académico não convive bem com a sua obra?

R – Pois, respondendo à sua pergunta… Não, não convive. Alguns académicos chegam a fazer investigação entre aspas sobre assuntos já por mim tratados e nem sequer citam as minhas obras anteriores a essa pretensa investigação, como se fossem eles que primeiro descobriram ou desenvolveram a matéria.

TM – Mas isso que me conta é inacreditável! Estamos a tratar de assuntos da cultura que é de todos nós e não duma elite encartada para julgar o que lhe agrada ou não, consoante a obra é editada por um licenciado na matéria, ou não! O que importa é a seriedade da obra e o contributo que aporta para a nossa cultura tradicional…não lhe parece?

R – Pois, pois… isso é música celestial. A realidade é bem diferente. Dou-lhe um exemplo: as recolhas do Armando Leça. Foi graças a mim que, em 1982, elas foram redescobertas nas instalações da antiga Emissora Nacional e fui eu que as resgatei do esquecimento em que ali tinham vivido por quarenta anos. As gravações estavam dadas como perdidas. Fiz a sua transmissão integral num programa da Antena 2 que então assinava, o Cancioneiro Popular. Isso é do conhecimento público e foi mesmo desenvolvido num artigo que escrevi para a revista da Universidade Nova. Pois imagine que recentemente saíu um livro em que a autora, que, segundo julgo se formou nessa universidade e não podia ignorar esse artigo e outros que referiam o mesmo, essa autora, nesse livro, não fala dessa transmissão integral das gravações do Leça feita por mim e omite completamente a minha acção na reabilitação da obra etnomusical de Armando Leça, reivindicando para si própria esse mérito! Outro exemplo: há outra autora que, na Enciclopédia da Música em Portugal no séc. XX, em todas as entradas de sua lavra, se esforça por me retirar a autoria das recolhas musicais editadas em 1982, em três discos de vinil, sob o título “Recolhas Musicais da Tradição Oral Portuguesa”. Ora, ela bem sabe que sou eu o autor, não só porque é isso que consta da obra, mas também porque isso está devidamente certificado em documento notarial, que bem conhece.

TM – Estou simplesmente chocada com o que me conta… Mas confesso que também fico surpreendida por constatar, que nada o consegue desmotivar nem quebrar a sua persistência para continuar as suas pesquisas, pois não?

R – Claro que não. Se Deus me der vida e saúde, tenho ainda muita investigação e muitos projectos a realizar e muitos livros para escrever. Com a vastidão do arquivo que possuo, não me faltam projectos. Sei o que estou a fazer e a importância do que estou a fazer.

TM – Não queria terminar sem lhe agradecer a sua disponibilidade para de algum modo colaborar com a nossa página na internet, sobretudo ao nível da enciclopédia que amavelmente pôs à disposição do público, prestigiando a página do nosso sítio Terra Mater.

R – Para mim, é um gosto colaborar com todos quantos amam e cultivam as nossas tradições populares. Quanto à enciclopédia, trata-se de uma coisa simples, muito directa, que eu já tinha ideia de escrever há algum tempo e que servirá para informação rápida. Há muita gente que me telefona e me consulta para eu dar a minha opinião sobre este ou aquele tema, ou para esclarecer alguma dúvida que trazem nos seus espíritos, sobretudo gente ligada aos ranchos de representação folclórica. Pensei que seria útil fazer um pequeno dicionário, sem grandes pretensões teóricas e sem explicações fantasistas, tão frequentes neste domínio…

TM – Quer explicar melhor o que quer dizer?

R – Nesta área das tradições populares há uma enorme tendência para inventar explicações completamente irreais, historietas sem qualquer ponta de verdade, à semelhança do que vemos frequentemente ser feito pelos guias turísticos para apelar ao pitoresco e alimentar a curiosidade dos turistas, a maioria deles crédulos ou desconhecedores da matéria. As tradições populares, porque são cultura não escrita, constituem terreno fértil para invencionices. Infelizmente, assiste-se muito a esse fenómeno entre os dirigentes dos ranchos de representação folclórica, mas não só. Também os antropólogos, de canudo em riste, doutores do folclore, são pródigos em explicações estapafúrdias e miríficas para certas tradições, afinal muito simples, muito prosaicas e muito comezinhas. Às vezes com intuitos de mera politiquice. Só um exemplo: o barrete verde com faixa encarnada que se encontra associado ao campino ribatejano é, por vezes, tratado como uma criação do nacionalismo do Estado Novo. Até o barrete popular serve para fazer politiquice! Pois bem: nem esse barrete é exclusivo do Ribatejo, visto que está referenciado noutras províncias, como nem sequer surgiu durante o Estado Novo, porque há provas documentais da sua existência muito antes de 1933 ou 1926, como se preferir… Isto é apenas um exemplo do que grassa por aí. Ora, estes assuntos deviam ser tratados com respeito e seriedade. Pode ser que a minha colaboração contribua de algum modo para a desconstrução de certos mitos que têm vindo a ser criados, uns com objectivos de politiquice, outros frutos de mera ignorância ou de imaginações delirantes…

TM – Então, resta-me agradecer-lhe pela amabilidade e gentileza com que nos recebeu e manifestar-lhe a maior gratidão pelo trabalho admirável que tem vindo a desenvolver em prol das tradições populares portuguesas. Fique certo que a TERRA MATER terá sempre o maior prazer em divulgar todos os seus trabalhos, quer pelo seu prestígio e merecimento, quer pela dedicação, profundidade e rigor das suas obras. A Cultura Portuguesa precisa de mais apaixonados como o senhor, que se dediquem por amor à cultura e não por interesses egoístas. Bem haja!

Lisboa, 17 de Outubro de 2015