Entrevista a Mário Correia

1 – Como nasceu a sua paixão pela música popular?
Embora nascido na Praia da Granja, Vila Nova de Gaia (1952), por força da grande migração de “braguistas” para trabalhar nas quintas dos arredores do Porto, passei grande parte da minha infância numa aldeia dos arredores de Braga (Moure, Vila Verde), da qual era natural a minha mãe (sendo meu pai da vizinha aldeia da Ateães, pertencente ao mesmo concelho). Imigrantes na zona do grande Porto, meus pais eram, portanto, gente do coração do Minho, para quem a música tradicional e folclórica fazia parte integrante das suas vidas, marcando-lhes os ciclos e as estações. E, como tal, a paixão pela música popular teve em meu pai (um repentista dos cantos ao desafio) e na minha mãe (exímia bailadeira de viras e de chulas) os seus principais estímulos. Acresce que meu pai me levava frequentemente para todas as grandes festas e romarias minhotas, nas quais inclusivamente me obrigava a escutar também as “peçadas” das bandas filarmónicas (sempre duas, disputando os aplausos do público presente) que eram indispensáveis naqueles coretos multicoloridos instalados nos arraiais para o efeito.

2 – Quais as razões fundadoras do festival Intercéltico do Porto?
O Festival Intercéltico do Porto nasceu em 1986, pelas vontades conjugadas de Bernard Despomadères e Avelino Tavares, tendo a ideia surgida da seguinte maneira: Portugal acabava de entrar na Comunidade Económica Europeia e Bernard Despomadères pensou que o papel do Institut Français de Porto, que era uma instituição integrada no tecido cultural da cidade cuja primeira vocação era o estabelecimento de relações de cooperação entre os dois países, seria o de reflectir sobre o que já nos aproximava. Antes de fazermos parte dessa Comunidade já havia entre nós, Portugal, França e outros países da Europa, relações e raízes culturais comuns, as quais faziam com que, no fundo, já fossemos primos. Foi então que, reflectindo nisso, se chegou à conclusão de que a primeira raiz cultural, que se saiba, era céltica, pelo que se podiam fazer no Porto uns Encontros Intercélticos… Ambos consideravam que não era desejável mostrar-se apenas a cultura francesa, na medida em que era muito importante o diálogo entre as duas culturas, o encontro entre as duas culturas para uma melhor compreensão e conhecimento mútuos. E foi isto que aconteceu com a criação do Festival Intercéltico do Porto. O Festival Intercéltico correspondia a algo que já existia no Porto algo que estava radicado na população do Porto, em termos culturais, a qual tinha uma apetência cultural para este género de música. No fundo, foi um encontro feliz entre uma ideia cultural e a realidade do público…

3 – E a música tradicional, que importância assumiu no meio portuense do Intercéltico?
A música tradicional assumiu uma grande importância no meio portuense do Festival Intercéltico a justa medida em que passou a ser o eixo da programação, quer no palco principal (por onde passaram os maiores nomes da sua recriação e revitalização, com maior ou menor incidência folk e naão apenas da área do chamado Arco do Atlântico – Portugal, Galiza, Astúrias, Cantábria, Bretanha, Inglaterra, Escócia e Irlanda, entre outros – tendo mesmo chegado aos Cárpatos e à Transilvânia, com passagens pelas terras do norte italiano e das terras escandinavas), quer nas respectivas actividades paralelas (mostras discográficas e instrumentais, debates e congressos, jornadas e conferências, exposições e concertos paralelos…), que passaram a ser uma das imagens da marca do evento. Para muitos dos grupos da trad&folk portuguesa, o Festival Intercéltico do Porto tornou-se uma rampa de projecção nacional e internacional. E foram muitos os novos grupos surgidos quer na cidade quer na região, sem dúvida estimulados pelas dinâmicas criadas em torno do Intercéltico do Porto (que não pode ser dissociado do trabalho tão fundamental como decisivo que foi então levado a cabo, aos mais diversos e diferenciados níveis, pelo MC-Mundo da Canção, a partir do Porto).

4 – Como, quando e porquê resolveu ir para Sendim, em pleno planalto mirandês?
A Sons da Terra foi criada em meados de 1998 tendo como objectivos fundamentais a edição discográfica de recolhas musicais da tradição oral portuguesa, por um lado, e a realização de concertos e de festivais de algum modo relacionados com as músicas tradicionais, por outro. Mas o primeiro objectivo era, de facto, o prioritário. Ou seja, foi essencialmente com o objectivo de proceder à publicação de discos documentais da nossa tradição musical que a Sons da Terra surgiu. Tanto mais que tinha sido publicado por mim, já em 1997, um primeiro disco (com recolhas efectuadas em Vale Martinho, em terras de Mirandela) da série de gaiteiros tradicionais e os resultados foram francamente estimulantes. De tal maneira que foi então elaborado um plano para proceder à gravação sistemática dos gaiteiros do Nordeste Transmontano, começando pela área mirandesa, onde se dizia estarem então a desaparecer (tinha surgido, em 1996, o grupo Galandum Galundaina, chamando então repetidamente a atenção para este facto). A fixação em Sendim (em Setembro de 2001) acabou por ocorrer de forma natural (trata-se de uma povoação que ocupa uma posição central na área do chamado Planalto Mirandês), acabando a mesma por ser determinada pela decisão em se realizar na mesma o Festival Intercéltico de Sendim, cuja primeira edição ocorreu em Agosto de 2000.

5 – Diga-nos como tem desenvolvido em Trás-os-Montes o seu trabalho de recolha e divulgação das tradições populares?
A edição de recolhas musicais da tradição oral portuguesa tinha à partida um adversário temível: uma perda acentuada da memória colectiva dos cantos e das músicas tradicionais… É de facto um problema que se enfrenta porque as profundas alterações de natureza económica e social e a poderosa influência dos meios de comunicação determinaram que tal memória se fosse desvanecendo. Não só se modificaram ou desapareceram mesmo os contextos em que se cantava e tocava nas comunidiades rurais (no seio das quais as nossas tradições musicais sempre persistiram) como se perderam as funções tradicionalmente desempenhadas. Veja-se o caso, por exemplo, das cantigas da segada em Trás-os-Montes: o progressivo abandono dos campos e a mecanização da agricultura fizeram desaparecer, quase por completo, as cantigas da segada, que hoje apenas persistem na memória dos mais velhos e já de forma fragmentada. Porém, o mesmo não sucede, na mesma região, com o repertório dos gaiteiros: não só se assistiu a um renascimento da tradição gaiteira (com os velhos gaiteiros a integrarem de novo as festas das comunidades rurais) como surgiram novos gaiteiros, já não pastores ou construtores das suas próprias gaitas mas gente com alguns conhecimentos musicais, interessada nas suas tradições musicais e que muito tem vindo a contribuir para a revitalização da tradição. E o facto de a Sons da Terra ter surgido a gravar e a editar os velhos gaiteiros acabou por funcionar como mais um grãozinho de areia para esta valorização e divulgação da música tradicional da região. Mas a tradição já não é o que era – nunca o foi, porque foi sempre algo dinâmico – e muita coisa se perdeu, por falta de recolhas (apesar de existirem trabalhos a todos os títulos meritórios, como os de Michel Giacometti e de José Alberto Sardinha, por exemplo) e esse é um aspecto que deve ser encarado com realismo: sempre se perderam espécimes, as alterações e as influências sempre se deram, a introdução de espécimes novos que se tradicionalizaram ao longo dos tempos sempre se registou (veja-se, por exemplo, o caso dos espécimes trazidos pelas invasões francesas, por exemplo) e não foi por isso que a música tradicional desapareceu ou empobreceu. É preciso ter muito cuidado com visões passadistas e estáticas da tradição. Esta pressupõe um acto contínuo de entrega, de transmissão e consequente exposição às mais diversas e distintas interacções culturais. É preciso acabar de vez com a ideia de purismos fundamentalistas na música tradicional. O editorial da Sons da Terra é muito claro: a tradição é o que é, sempre diferente do que foi ou do que será. È preciso ter muito cuidado com juízos de valor e tentações do género: muitos dos que fazem trabalho de recolha ainda se sentem como uma espécie única de iluminados capazes de descobrir as verdadeiras jóias da nossa música tradiciona, as mais autênticas, etc. Eu tenho muitas dificuldades em lidar com esse tipo de atitudes. Até porque quem define o que é ou não tradicional, o que se tradicionalizou e o modo como se tradicionalizou e o grau que alcançou nesse processo sempre foi o povo e não esses “iluminados”. Na Sons da Terra não abdicamos, de forma alguma, desta posição e quando efectuamos as nossas gravações fazêmo-lo sobretudo com a preocupação de fornecer documentos e testemunhos de interesse etnomusicológico e susceptíveis de contribuir para um melhor e mais profundo conhecimento sobre os repertórios tradicionais. E, neste sentido, de algum modo nos podemos considerar algo pioneiros (salvo escassos exemplos existentes como, por exemplo, do famoso Tiu Lérias de Paradela, Francisco dos Reis Domingues, gravado e editado Michel Giacometti) no registo e consequente edição regular e sistemática de repertórios de um só tocador ou grupo de tocadores, dos cantos de uma determinada aldeia.

6 – Qual o espólio e as actividades do Centro Tradicional Sons da Terra?
Em Março de 1999 foi criada a empresa Sons da Terra, tendo como principais actividades: edição de recolhas musicais da tradição oral portuguesa (foram já publicados, na etiqueta discográfica Sons da Terra, cerca de 120 discos compactos); edição de livros e de publicações associadas à temática musical; realização de concertos e de festivais, bem como apoio promocional e divulgativo de eventos de tal natureza. Com o objectivo de integrar este conjunto de actividades de forma mais estruturada e tendo em consideração a fixação em Sendim, em Setembro de 2001, foi criado o Centro de Musica Tradicional Sons da Terra (em edifício que fora doado à freguesia por um padre natural da terra com a condição de que fosse usado para fins culturais), especialmente consagrado ao trabalho de recolha, estudo e divulgação da música tradicional (com particular incidência na área transmontana). Assumindo-se como um centro de investigação, o Centro tem apoiado estudantes de etnomusicologia e antropologia (nacionais e estrangeiros) na elaboração quer de simples trabalhos quer de projectos mais completos e extensos (teses e tesinas várias, em colaboração com instituições universitárias sobretudo estrangeiras). O acervo do Centro de Música Tradicional Sons da Terra é já muito considerável: uma biblioteca com cerca de 4000 títulos, assumindo particular relevância as secções musicais e instrumentais, assim como as áreas da etnografia e antropologia, por um lado, e o fundo de publicações locais e regionais; um conjunto de registos áudio com cerca de 400 horas de gravações do trabalho de campo, complementados com cerca de 200 horas de documentos videográficos; um arquivo fotográfico com mais de 60 000 fotografias, assumindo particular importância a recolha de fotos nas aldeias, num total que ascende a mais de 5000 documentos; colecção de cartazes e de programas de festas locais e de romarias; grande número de entrevistas a tocadores e bailadores; recolha e arquivo de registos históricos e domésticos, disponíveis para estudo e consulta.

7 – Qual a sua opinião sobre o nascimento de grupos femininos a interpretarem a dança dos pauliteiros?
A questão da interpretação das danças dos pauliteiros por mulheres remonta a inícios dos anos 80, do século passado, com uma primeira e pioneira experiência realizada na aldeia de Bemposta (Mogadouro). No “manifesto” da Sons da Terra, a dado passo, refere-se que, no exercício das suas actividades e concretização dos objectivos pré-definidos, se procurará “fazer registo e dar testemunho de um património cultural num tempo determinado, com a consciência de que muito se foi perdendo e algo se foi preservando na sucessão dos dias que fazem os ciclos da vida das gentes”, acrescentando-se em jeito de conclusão: “Na certeza de que a tradição é o que é, sempre diferente do que já foi ou do que será, Sons da Terra faz agora eco possível do passado, procurando contribuir para a fixação da memória da tradição em constante mutação. Com gente viva. Aqui e agora, num tempo de viagens e de recomeço constante.” Na investigação que realizamos sobre a presença das mulheres nas danças de paulitos pudemos concluir que o faziam porque achavam importante que a dança não se perdesse e que estivesse presente nas festas das respectivas localidades, tendo sido, numa primeira fase, por desinteligências com os moços que as raparigas decidiram prepara a dança (aconteceu em Bemposta e Valcerto, no Mogadouro, onde se formaram os grupos pioneiros femininos). Posteriormente e por força dos processos de folclorização, os poderes locais foram impulsionando e estimulando a criação de grupos, sendo de notar que nelas se exprime o mesmo carácter identitário da dança. O importante, consideramos, é que sintam um prazer culturalmente enraizado ao fazê-lo e isso, de facto, está muito presente nos grupos femininos de danças de pauliteiros.

8 – Em face da desertificação das aldeias do interior, como vê o futuro das tradições populares (festa dos rapazes, pauliteiros, gaiteiros, etc.)?
A questão da desertificação é apenas um dos problemas com os quais há muitos anos o interior do País se vem confrontando. Por força das profundas alterações das condições de vida das pessoas nas comunidades rurais, os repertórios musicais foram afectados nos respectivos usos e funções, contextos e territórios. Estas modificações começaram a dar-se com os surtos migratórios de finais do século XIX, prolongando-se durante o século XX, durante o qual a desruralização com o consequente abandono do interior e a guerra colonial (eram mordomos das festas dos rapazes, ensaiavam a dança dos pauliteiros, por exemplo, os moços que iam à inspecção e ficavam livres do cumprimento do serviço militar) fizeram sair das aldeias gente que não mais a elas voltou, sendo certo que não foram incrementadas políticas de desenvolvimento económico para estas regiões que criassem emprego e condições de permanência. Os processos de transmissão oral foram afectados de forma muito comprometedora para a continuidade expressiva e contextualizada dos repertórios musicais, dos cantos e dos bailes. Estes, aprendiam-se por imersão, ou seja, pelo simples facto de se viver numa determinada comunidade rural, na qual as expressões musicais eram vivenciadas em contextos (momentos performativos, como por exemplo as ocasiões festivas especiais, as festas patronais…) e territórios (no âmbito familiar, nos terreiros, nos campos, nas curraladas…) muito concretos. Na aprendizagem por imersão, o simples facto de se fazer parte de uma determinada comunidade rural conformava a aquisição de todo esse património cultural imaterial, naturalmente que com distintos e diferenciados níveis, tendo em conta a capacidade auditiva e de fixação memorial, deste modo se conformando as variantes desses mesmos repertórios, justamente uma das mais interessantes características identitárias das músicas e cantos de tradição oral. A mencionada aprendizagem por imersão, favorecendo a fixação e a transmissão de variantes de um mesmo repertório de base, determinou todo um processo de apreensão e de aquisição de conhecimentos que conferiu a cada comunidade o carácter funcional de verdadeira aldeia-escola. No decurso das nossas andanças (etno)musicológicas pelas comunidades rurais foi- nos dado constatar que os mecanismos da transmissão oral assumiam, em cada aldeia, aspectos específicos, conformando um conjunto de variantes aos mais diversos níveis, sobretudo relacionados com o facto de os agentes transmissores e as circunstâncias em que a tradição se foi realizando – no perpetuum mobile que a caracteriza, tão bem evidenciado e consignado pelo dito popular que nos diz que quem conta um conto acrescenta um ponto. Acresce que este elemento de variabilidade constitui, justamente, uma das características mais significativas da transmissão dos repertórios musicais pelas vias da oralidade, sendo certo de que não se trata nem mais nem menos do mecanismo da mudança que determina a evolução de todas as tradições que não pararam no tempo (o que acarretaria a sua morte e desaparecimento) que se foram transmitindo pelo facto de serem vivenciadas pelas respectivas comunidades. Compreender que os repertórios musicais de tradição oral de um determinado âmbito comunitário eram aprendidos por imersão e viviam em variantes, é condição indispensável para um trabalho de campo rigoroso, correcto e adequado quando se trata de efectuar registos documentais para memória futura. Mas é também – e sobretudo – motivo de grande preocupação, que nos remete para o “mundo perdido” de que já falava, nos anos 60 do século passado, Ernesto Veiga de Oliveira. Resta- nos o “consolo” de que se nós morremos porque não hão-de morrer, também, as tradições?