Desafio, Canto ao – Disputa poética improvisada e cantada. Este género poético-musical hoje praticado pelo nosso povo tem raízes na tenção medieval, que era uma cantiga dialogada. Nas tenções de briga, os poetas atacavam-se um ao outro com a particularidade de a resposta de cada um dos contendores ser iniciada com a rima do anterior, a que se deu o nome de leixa-pren (em tradução livre: deixa e pega), ainda hoje presente nos nossos cantares ao desafio, elemento de importância para distinguir os bons cantadores. A “troca de chalaças” era um divertimento corrente entre o povo nas romarias da Idade Média: Afonso X, o Sábio, revela que nas romarias havia o costume de se dizerem “chacotares”.
Assim, segundo Carolina Michaelis de Vasconcelos, o género poético da tenção e também as cantigas de escárnio e as de mal-dizer seriam a expressão erudita de uma prática muito enraizada na tradição popular. Na nossa tradição popular moderna, trata-se de um canto popular em que dois ou mais cantadores se despicam poeticamente, com ataques verbais mais ou menos contundentes, frequentemente com carácter brejeiro, por vezes até a roçar a ordinarice, sobretudo quando se confronta um cantador com uma cantadeira.
É o género poético repentista por excelência, em quadra, rimando o segundo com o quarto verso (eventualmente acrescida de mais dois versos com rima igual à da quadra, consoante o momento e a inspiração do cantador), ao som da chula, malhão, ou, mais frequentemente, da cana-verde (Minho, Douro Litoral, Trás-os-Montes, Beira Litoral), do fado na Beira Alta, Beira Baixa, Ribatejo e Estremadura, de um género musical conhecido por despique (e também, mais recentemente, pelo baldão) no Alentejo e Algarve, outrora do fandango em todo o país. Nos Açores usa-se preferencialmente o Pezinho, assim como outras modas bailadas (na Terceira predominam as “Velhas”, de estrutura musical idêntica à Rusga duriense). Na Madeira é utilizado o Bailinho e o Despique.
Esta forma de simples torneio poético com ataques entre os cantadores é a mais usual nos arraiais das romarias nortenhas, em que esses cantadores aparecem espontaneamente junto às tendas de comidas e petiscos, ou em certos locais mais retirados, pela noite fora. Uma característica poética importante que os cantadores exibem com orgulho é a obediência ao ponto, isto é, cada cantador deve, no seu primeiro verso, respeitar a rima do último verso do cantador antecedente, reminiscência do leixa-pren medieval, como se disse. A esta obrigatoriedade poética, que aliás é elemento identificador dos melhores cantadores, dá-se no Minho o nome de “pega”.
Além desse modelo, existe outra forma de cantar ao desafio, mais institucionalizada, mas não menos importante: é subordinada a um tema, a que o povo chama cantar com fundamento ou “afundamento” (sic): existem dois conceitos antagónicos, cada um defendido por cada cantador, aqui só em número de dois, que podem ser: o amor e o dinheiro, o lavrador e o pescador, a terra e o mar, a serra e o campo, o ferro e a madeira, a água e o vinho, a terra e o fogo, o homem e a mulher, o pecado e a virtude, o acto e a ideia, etc.
Este duelo poético-musical é protagonizado em cima de um palanque ou de um palco, com o suporte instrumental de um pequeno grupo, geralmente constituído por viola popular portuguesa, violão e concertina. Todos eles actuam mediante contrato com a organização da festa, recebendo os cantadores uma retribuição pecuniária superior à dos instrumentistas. Esta prática de pagamento é muito antiga, como reconhecimento do valor da prestação musical, sobretudo da prestação poética dos cantadores e dos seus dotes de improvisação e de argumentação, mais ou menos elaborada. Os temas são sorteados pelos mordomos imediatamente antes da actuação, em cima do palco, em frente do auditório, para que todos os presentes saibam que os cantadores não tiveram deles prévio conhecimento.
Além dos referidos temas, podem também ser sorteados episódios da História de Portugal, como vida de reis e batalhas importantes (v. g. Pedro e Inês de castro, D. Afonso Henriques, os Descobrimentos), e ainda temas bíblicos, geralmente do Antigo Testamento (a criação do mundo, Moisés e a fuga do Egipto, Adão e Eva, etc.), ou do nascimento do Menino Jesus, ou mesmo da paixão e morte de Cristo, bem como a vida de santos, mormente a vida do santo que é venerado naquele dia e naquela festa. A estes últimos temas se chama cantar ao divino, em contraposição com os restantes, que se englobam na classificação de canto ao profano.
Estes duelos poético-musicais em palco começam invariavelmente pelos cumprimentos à assistência, à comissão de festas, por vezes com alusão ao santo padroeiro da festa, só depois se entrando propriamente no tema. No final, a cortesia obriga a cumprimentos de despedida e agradecimentos ao público presente. Ultimamente têm proliferado encontros de cantadores, organizados por eles próprios, ou associações de que fazem parte, sobretudo no norte e centro-norte do país.
O povo escuta avidamente os cantadores para apreciar os seus dotes repentistas e a graça ou habilidade com que respondem um ao outro, e também para receber ensinamentos, sobretudo nos desafios com fundamento, em que os próprios cantadores têm orgulho em ostentar os seus conhecimentos, quer da História Sagrada, quer da História de Portugal, quer ainda dos mais variados temas supra-referidos. Note-se que eles estudaram a Bíblia e o manual de História de Portugal para poderem depois, em palco, exibir os conhecimentos assim colhidos. Daí que, juntamente com os músicos itinerantes (vide ceguinhos), com os sacerdotes e com os professores primários, os cantadores de desafio fossem pessoas consideradas na sociedade tradicional como fontes de informação, portadores de notícias do mundo exterior às então isoladas comunidades rurais.
Já sou velho na idade / Mas inda tenho teoria, Tenho memória de novo / E muita sabedoria. (Joaquim Gonçalves, 84 anos, de Guimarães, na noitada do S. Bento da Porta Aberta)
Discografia: Recolhas Musicais da Tradição Oral Portuguesa, 1982, de José Alberto Sardinha, Disco 2, Lado B, Faixa 1 (S. Pedro de Paus, Resende); Portugal – Raízes Musicais, recolhas de José Alberto Sardinha, BMG/Jornal de Notícias 1997, CD 1, Faixa 1 (Santa Maria da Feira), 5 (Baião), CD 2, Faixa 27 (Vila Real), CD 3, Faixa 1 (Lamego), CD 6, Faixas 2 (Madeira), 16 (Ilha Terceira), 20 (Monchique); Recolhas de Armando Leça, inéditas, arquivo RDP, bobine AF-531 (Bom Sucesso, Aveiro), AF-534 (Farrapeirinha – Vilarinho, Lousã).
N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.