Corpus Christi

Corpus Christi – Celebração religiosa para festejo da transubstanciação do Corpo de Deus, criada na Bélgica no séc. XIII e rapidamente espalhada por toda a cristandade. Representa a vitória do Bem, substanciado na Hóstia Sagrada, sobre o Mal, identificado pelo demónio e outras figuras, como a serpe ou o dragão. Após a reforma luterana, que negava a presença de Cristo na Hóstia, o Concílio de Trento impulsionou o fortalecimento da Festa do Corpo de Deus, designadamente através do incremento das procissões eucarísticas pelas ruas, como forma de acção de graças e de demonstração pública de fé.

A festividade difundiu-se por toda a Europa e tornou-se uma das principais da Cristandade, desde logo por se encontrar no cerne da crença cristã: pela Eucaristia realiza-se a presença sacramental de Jesus, com o pão e o vinho transubstanciados no Seu corpo e sangue, como anunciado na Última Ceia; e também porque a Igreja, empenhada em transmitir a importância do mistério dessa transubstanciação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo durante a Missa, fez convergir para a procissão de Corpus Christi o maior número de elementos e símbolos religiosos, assim do Antigo como do Novo Testamento, passando a mesma procissão a contar com uma infinidade de figurações representando, por exemplo, Adão e Eva, Abraão e Isaac, S. João Baptista, S. Pedro, Sto. Estêvão, a fuga da Sagrada Família para o Egipto, a Adoração dos pastores e dos Reis Magos, e muitos outros acontecimentos e motivos bíblicos e sagrados da devoção popular, como S. Cristóvão e S. Sebastião.

O mesmo aconteceu, naturalmente, em Portugal, onde, à semelhança de outros países católicos, a procissão do Corpo de Deus chegou a atingir, desde a Baixa Idade Média até ao séc. XVIII, grandes dimensões, enorme solenidade e luzimento, e até, por vezes, imponência e aparato espectacular, com danças, pélas, folias, mouriscas, cenas bíblicas, históricas e mitológicas, tudo destinado a causar impressão junto do povo, que acorria de longe para assistir, e a incrementar a sua fé. A presença de música e dança nesta procissão (como aliás noutras) não deve causar espanto se nos lembrarmos que a música e a dança sempre foram consideradas, desde a Antiguidade, como dons divinos e formas superiores de adorar e venerar os deuses, as divindades, o mesmo acontecendo com a religião cristã, em que o Pai Eterno e a Glória Celestial são habitualmente representados com anjinhos músicos tocando os mais variados instrumentos musicais.

Pela importância da celebração, foram convocadas a participar e a contribuir para a imponência e brilho da procissão de Corpus Christi as principais instituições da sociedade, quer religiosas, quer civis, quer militares. Daí a presença das corporações de artes e ofícios, que foram encarregadas de assegurar as mais variadas representações músico-coreográficas, representativas das respectivas profissões (sapateiros, alfaiates, ferreiros, pedreiros, etc.), que se exibiam no decurso da procissão, a qual demorava, por isso, horas a passar e constituía um verdadeiro espectáculo de luz, cor, música e dança, tudo para maior honra e exaltação do Corpo de Deus.

Os instrumentos musicais que serviam nesta grandiosa manifestação religiosa foram, ao longo dos séculos, os mais variados, desde a charamela ou a gaita-de-foles (esta ainda hoje assegurando musicalmente o Baile dos Ferreiros, em Penafiel) até aos pequenos conjuntos provenientes de bandas filarmónicas, geralmente compostos por clarinetes, tuba, clarins, tambores, caixas de rufo, ferrinhos, pandeiretas, passando pelo acordeão, hoje muito utilizado nas danças populares do Corpus Christi de Penafiel.

Quanto aos trechos musicais interpretados por estes instrumentos, eles foram evoluindo ao longo dos tempos, consoante a voga e as formas preponderantes em cada época histórica. Dada a quantidade de danças que se exibiam na procissão de Corpo de Deus e das músicas que as serviam e dado também o facto de toda esta tradição músico-coreográfica ser bem remunerada (pela Igreja, pelos festeiros, pelas corporações de ofícios), havia músicos e coreógrafos que a ela concorriam profissionalmente e para as várias danças compunham músicas e elaboravam coreografias, as quais depois rapidamente eram copiadas pelo povo e repetidas noutras circunstâncias assim entrando na corrente da tradição oral, podendo por isso dizer-se que as festividades do Corpus Christi constituíram, ao longo de séculos, um verdadeiro alfobre de músicas e bailes populares.

O brilho das procissões do Corpo de Deus foi diminuindo a partir do advento do liberalismo, acabando as danças por saírem desta festividade para passarem a integrar outras manifestações, tanto religiosas (festas de santos ou outras invocações), como profanas, de que se destaca o Entrudo, para onde transitaram muitos desses elementos coreográficos – vide Contradança.

Em Portugal, a única localidade que mantém a tradição das danças populares do Corpus Christi é Penafiel. Embora já não actuem durante a procissão, exibem-se na véspera em frente ao edifício da Câmara Municipal, a chamada cavalhada nocturna, e no dia pelas ruas da cidade. Integram a procissão, mas apenas como figurantes. É assinalável a variedade e riqueza das danças populares do Corpus Christi de Penafiel que continuam a sair, após um trabalho de recuperação de algumas delas em que colaboraram José Alberto Sardinha e o Museu Municipal: Ferreiros, Pedreiros, Turcos, Floreiras, Pauzinhos e Pretos (este exibindo a dança das fitasvide).

Mais: Danças Populares do Corpus Christi de Penafiel, de José Alberto Sardinha, Tradisom 2012, com CD contendo as recolhas musicais e DVD da exibição das danças.

N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.