Círio – Peregrinação colectiva a uma capela ou santuário, em honra do santo ou da Virgem de que tal ou tal comunidade é devota. Antigamente, a localidade de fiéis transportava consigo um círio, grande vela de cera votiva, o que acabou por dar o nome à própria romagem. É a forma de romaria estremenha por excelência (também de certas zonas do Ribatejo e Beira Litoral). Ao contrário da romaria nortenha, em que o santuário fixa a data de veneração do Santo, dia em que todo o mundo aí acorre, no círio é a aldeia ou localidade devota que escolhe o dia em que quer deslocar-se ao santuário ou capela. De tal forma que os principais santuários estremenhos (Senhora dos Remédios em Peniche, Senhora da Nazaré no Sítio, Senhora do Cabo no Cabo Espichel, Senhora da Atalaia no Montijo, Bom Jesus do Carvalhal no concelho de Bombarral, etc.) recebem de Abril a Setembro, aos domingos, a visita dos círios das mais variadas proveniências.
Esta é provavelmente uma sobrevivência da forma de todas as antigas romarias, já que coincide com as descrições das peregrinações medievais: a deslocação colectiva de certas comunidades de fiéis, desde as suas terras de origem até um centro religioso, capela ou santuário de sua devoção, vencendo grandes distâncias e durante vários dias, num misto de fervor colectivo, sacrifício, penitência, mas também de afirmação da comunidade e de folguedo que ainda hoje, em grande parte, se mantém.
Antigamente, a deslocação era feita em carros de bois, vistosamente cobertos de colchas e panos de linho e engalanados de palmas e ramarias, destinando-se o primeiro dia à viagem de ida, outro, o domingo, para permanecer no santuário, cumprir as promessas e participar nas cerimónias religiosas e um terceiro, segunda-feira, para o regresso à terra de origem. A pernoita era garantida nos “quartéis” dos romeiros, nas imediações do santuário, havendo noitadas de folia e bailarico.
Hoje em dia, a deslocação é assegurada por tractores com seus atrelados e carrinhas de caixa aberta, engalanados com grandes arcos de palma e verduras. Salvo algumas excepções (v. g. Senhora da Atalaia), tudo se faz agora num só dia. A comissão contrata um gaiteiro que, nos domingos anteriores, percorre a aldeia e as localidades circunvizinhas fazendo o peditório para a festa. O reportório é composto por marchas e música festiva em voga.
Cada comunidade de fiéis transporta a sua cruz processional e as lanternas, os seus pendões e estandartes, que seguem no carro cabeça do cortejo, onde também viaja o gaiteiro, bem como os “anjinhos”, meninos que têm a seu cargo o canto das loas – vide. Estas são deitadas na própria aldeia, à partida (no final da missa, imediatamente antes da procissão), nos locais de paragem e à chegada ao santuário em honra do orago visitado (logo que chegam, os peregrinos organizam uma procissão que dá três voltas em redor da capela ou santuário, no fim da qual os anjinhos cantam as loas virados para a entrada do templo); depois, na missa, durante a procissão e, por fim, no regresso ao lugar de origem, à chegada à igreja. Quanto ao gaiteiro, este toca nas paragens do trânsito pelas ruas de cada localidade, a fim de recolher o óbolo dos respectivos habitantes. Toca também, agora hinos religiosos, nas três referidas voltas tradicionais, em procissão, ao redor da igreja, capela ou santuário, à chegada do círio, bem como durante a missa e na procissão. Tocava ainda nos bailes das noitadas, quando os círios demoravam três dias (na Senhora da Atalaia, isto ainda acontece, porquanto os romeiros mantêm o hábito de pernoitarem na casa do seu círio). Esta é a forma clássica dos círios.
Porém, por força da grande devoção e afluência que mostravam os círios dos dois principais santuários (o da Senhora do Cabo e o da Senhora da Nazaré), veio a institucionalizar-se uma forma mais elaborada de organização da romaria. Assim foi que algumas comunidades de fiéis se juntaram e estabeleceram entre si uma combinação ou compromisso, com regras comuns para uma conveniente veneração da Virgem, ficando cada lugar ou freguesia responsável pela realização da peregrinação num certo ano e as outras nos anos seguintes, até voltar à primeira, por isso se chamando a esta fórmula o “giro das freguesias”. Todas as paróquias subscritoras do compromisso assumiram o custo colectivo do fabrico de uma imagem da Senhora venerada, cópia fiel da que existe no santuário respectivo, acordando entre si que essa imagem fique confiada durante um ano a cada uma delas, que a deve entregar à que se lhe segue na ordem do giro. Assim, cada freguesia só faz a festa de tantos em tantos anos, quando recebe a imagem, depois de esta ter girado (e daí o nome de “giro”) por todas as outras, um ano em cada. O Círio da Prata Grande à Senhora da Nazaré, por exemplo, reúne o compromisso de dezassete freguesias, dos concelhos de Sintra, Mafra e Torres Vedras, pelo que cada uma só recebe a imagem e faz a festa de dezassete em dezassete anos.
Quando chega a sua vez, a freguesia em questão vai buscar a santa imagem à freguesia que a precede no giro, organizando para o efeito um cortejo solene, com o juiz, procurador, mordomos, sacerdote, anjinhos para cantarem as loas e demais notáveis locais, em luzida cavalgada e atrelados tirados a cavalos. Realiza-se uma cerimónia de entrega da imagem, cantando-se as loas de entrega e recebimento, a cargo dos anjos de uma e de outra freguesia. A imagem é seguidamente colocada numa berlinda puxada a cavalos e assim transportada à freguesia da festa. Pelas localidades onde passa, há paragem para cantar loas apropriadas e para entrada da imagem na igreja local, a fim de aí ocorrer um breve ofício litúrgico, a que assistem os membros do cortejo e o povo desse lugar, que comparece sempre em grande número.
Depois, a freguesia faz a sua festa de recepção da Virgem, com muito povo a esperá-la e com os anjinhos a cantarem as loas da chegada. Segue-se cerimónia litúrgica solene, na igreja lindamente ornamentada com flores. No dia seguinte, realiza-se a missa de festa e a procissão. A freguesia conserva em seu poder durante um ano a sagrada imagem e bem assim todo o valioso espólio pertencente à confraria, nomeadamente ouro e prata das ofertas e promessas, que deverá guardar escrupulosamente e transmitir para o ano à freguesia seguinte.
Do ponto de vista musical, atenta a grandiosidade que atingiram os dois giros (o chamado giro dos saloios à Senhora do Cabo e o chamado Círio da Prata Grande à Senhora da Nazaré, aquele com vinte e cinco e este com dezassete freguesias), foi abandonada a prestação do gaiteiro, por modesta, que foi substituído, em todas as ocasiões, maxime na procissão, por banda filarmónica. O gaiteiro mantém-se apenas nos pequenos círios locais. O grupo de Gaiteiros da Freiria, Torres Vedras, formado há poucos anos, por exemplo, vem assegurando a componente musical, já religiosa, já profana, de alguns destes círios, como é o caso do círio dos lugares de Poços e Concelhos, Freiria, à vizinha Senhora do Livramento (2015). Na fotografia: o gaiteiro Joaquim Roque, de Torres Vedras, tocando na procissão do círio das Figueiras a Santa Cristina, na Serra do Socorro, concelho de Mafra.
Mais: Tradições Musicais da Estremadura, de José Alberto Sardinha, p. 265 a 321.
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