Chula

Chula – Género músico-coreográfico popular, de divisão binária, com canto ao desafio, hoje circunscrito ao Minho e Douro Litoral, outrora, ainda no séc. XX, também existente noutras províncias, como a Beira Alta. Goza de enorme popularidade e expansão.

Inicialmente começou por se dar o nome de chula às danças grosseiras e próprias de gente baixa, de gente da ralé (gente chula), razão pela qual o termo albergava grande variedade de tipos coreográficos e musicais. Será por isso que no séc. XVII o Pre. Manuel Bernardes fala nas chulas, assim no plural, referindo-se, ao parecer, a cantares do povo, ou a bailes do povo. Existe uma outra dança com o mesmo significado de associação ao vulgo, o “vilão”: o autor anónimo de O Piolho Viajante, em meados do séc. XIX, fala de uns aguadeiros que “tocavam, num machinho, um vilão sem ser ruim”. Este termo, “vilão”, manteve-se na Madeira como título de uma dança, o que não sucedeu no continente, onde se obliterou.

E ainda no séc. XIX, César das Neves, no seu Cancioneiro de Músicas Populares, inclui chulas da mais variada proveniência e estrutura musical, até em compasso ternário, demonstrando que nessa época ainda vigorava uma asserção ampla do termo (trata-se de um “Vira Varino” notado em 6/8 no volume II, 1895, que ele sub-titula como chula).

Esse epíteto veio, a pouco e pouco, a ficar ligado a um só género músico-coreográfico, que passou por isso a ostentar essa denominação. Aconteceu, porém, que numa região a dança chula passou a ser uma, e noutra outra. Por isso é que a chula minhota é diferente da chula duriense (entenda-se, do Douro-norte, região de Amarante, Baião e Marco de Canaveses). Por isso é que em certas regiões a chula é uma dança em roda e noutras é uma dança de coluna. E noutras, como em algumas manchas durienses (Barqueiros), apresenta-se como dança masculina, em que os homens dançam acocorados, naquilo que parece ser uma representação da pisa da uva, numa espécie de transposição para o terreiro, depois para os palcos, dos movimentos que praticam nessa tarefa ao som da chula.

Por outro lado, as especiais características musicais da chula de Baião e Amarante conduziram à necessidade de utilização de uma rabeca de braço curto que, por isso, tomou o nome de rabeca chuleira. A construção deste instrumento só para a bailação da chula demonstra, do mesmo passo, a enorme popularidade de que desfrutava esta forma coreográfica – v. Rabeca chuleira. O mesmo terá acontecido, segundo Sampayo Ribeiro, com a chula de Ramalde, cuja popularidade também originou o aparecimento de rabecas ramaldeiras, “iguaizinhas às chuleiras”, aliás localizadas também em Terras de Basto por José Alberto Sardinha.

Na primeira colectânea de música tradicional, Músicas e Canções Populares, publicada em 1872, o autor, Adelino Neves de Mello, transcreve em quaternário, na secção dedicada às Cantigas do Minho, uma “Chula ou Ramalde”, o que parece indicar que ramalde é sinónimo de chula (V. Ramaldeira). No Almanaque de Lembranças para 1860, um artigo sobre a romagem da Senhora das Neves, Viana do Castelo, fala dos romeiros bailando a chula e o malhão.

A origem musical da chula actual (a que veio a vingar de entre as várias danças chulas outrora existentes) deverá situar-se no passacalhe, velho género musical utilizado pelo povo ibérico para tocar e cantar pelas ruas, nas tradicionais rondas dos rapazes, o qual veio, no séc. XVIII, a conhecer consagração erudita, pois foi cultivado por vários compositores, como Lully, Gluck e Bach. Mais tarde caído em desuso entre as classes elevadas, o passacalhe manteve-se na tradição popular e, graças à enorme versatilidade da sua estrutura musical (base harmónica com alternância entre a tónica e a dominante, permitindo grande variedade de formulações melódicas), veio a tornar-se um tronco comum de muitos géneros bailados pelo nosso povo, como os fados corridos, a chula, a cana-verde, a rusga, alguns pezinhos, alguns malhões.

Esta fonte comum para todos estes sub-géneros, ou melhor, espécies, tem dado origem a algumas confusões ou afirmações aparentemente contraditórias, como: César das Neves, numa partitura da Cana Verde da Maia, escreveu como sub-título “Chula”; Rebelo Bonito atribui à chula a origem do fado (corrido, entenda-se); Renato de Almeida assinala as semelhanças entre a chula e o fado (corrido, repete-se); Pedro Homem de Mello afirma, aliás acertadamente, que a Rusga ao Senhor da Pedra é um “autêntico fado corrido”.

César das Neves, no seu Cancioneiro de Músicas Populares, de 1898, classifica como chula a conhecida moda popular do Maridinho, em binário, recolhida no Alentejo, bem como uma sua variante recolhida nas províncias do Douro e Trás-os-Montes. Transcreve em quaternário uma chula da Maia. Também em quaternário, notou uma chula denominada “A Mirandeza”, com partes para gaita-de-folle e também para harmónico. Recolhida na Figueira da Foz, transcreve uma outra, mas em binário. No volume II do Cancioneiro de Músicas Populares, em 1895, o mesmo César das Neves reproduz, em binário, uma chula reiseira intitulada “O Manelzinho de Jovim”, que informa ser da autoria de Belmiro Porto, “fecundo autor deste género de cantigas, de quem a recolhemos directamente” (o que demonstra a criação individual de temas populares, mas tendo como base ou parâmetro a tradição em que o próprio autor está inserido como praticante – v. Criação popular); e em quaternário, uma chula rabela “característica da província do Douro”, cuja coreografia consiste em duas filas de homens, ou até apenas dois homens, que se aproximam e recuam, dando saltos e reviravoltas, acompanhadas com estalinhos dos dedos e de vez em quando põem-se de cócoras.

Fornece por fim o mesmo César das Neves uma informação importante a respeito desta última chula rabela: “No tempo das vindimas, a pisa da uva é geralmente feita ao compasso desta chula, que um rabequista contratado e um cantador e às vezes também uma cantadeira para os desafios, desempenham apalancados nos tonéis ou à beira dos lagares. Os instrumentos indispensáveis para uma festa chuleira são: rebeca, viola, ferrinhos e tambor, podendo-se-lhe agregar indistintamente todos os demais de corda ou de sopro”. Dizemos que é importante esta informação precisamente por revelar a ligação desta chula com a coreografia supra, a qual é ainda hoje ostentada pelos ranchos de representação folclórica daquela região duriense. Fica assim demonstrado que essa coreografia provém do acompanhamento que a chula fornecia nas pisas da uva, executadas exclusivamente por homens. Lembre-se, porém, que, conforme refere César das Neves, só de vez em quando é que eles se punham de cócoras.

Mais: A Origem do Fado, de José Alberto Sardinha, p. 274 a 279, 248-249.

Discografia: Recolhas Musicais da Tradição Oral Portuguesa, 1982, de José Alberto Sardinha, Disco 1, Lado B, Faixa 4 (Vitorino dos Piães, Ponte de Lima), 8 (Galegos, Póvoa de Lanhoso), Disco 2, Lado A, Faixa 1 (S. Pedro de Paus, Resende), Lado B, Faixa 7 (Cetos, Castro Daire); Portugal – Raízes Musicais, BMG/Jornal de Notícias 1997, de José Alberto Sardinha, CD 1, faixas 5 (Baião), 8 (Póvoa de Lanhoso), 12 (Monção), 19 (Ponte de Lima), 22 (Resende) e 29 (Paredes de Coura); A Origem do Fado, de José Alberto Sardinha, CD 3, Faixa 17 (Vilarinho da Samardã, Vila Real); Recolhas de Armando Leça, inéditas, arquivo RDP, bobine AF-525 (Travanca do Monte, Amarante), AF-526 (Vila Chã, Esposende, e Póvoa de Varzim), AF-527 (Vila Boa de Quires, Marco de Canaveses), AF-528 (Penafiel), AF-530 (Santa Cruz do Bispo, Matosinhos), AF-536 (Figueiredo de Alva, S. Pedro do Sul).

N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.