Cante – Nome por que é hoje correntemente tratado o canto coral popular do Baixo Alentejo, certamente por influência da vizinha língua espanhola, ou por expressão comum. A sua estrutura musical é essencialmente a seguinte: o canto é iniciado pelo “ponto”, solista que entoa os dois primeiros versos de cada quadra (por vezes só um verso), após o que prossegue com uma voz aguda, o “alto”, que, com uma entoação ornamentada (por vezes numa simples sílaba) em melisma, introduz o coro dos restantes cantadores, com o qual forma depois, até final, uma harmonia de terceiras, em gymel. Tanto o ponto como o alto têm a faculdade de improvisar na ornamentação das notas, consoante as potencialidades rítmicas e vocais de cada cantador. Note-se que o alto nem sempre introduz o coro com uma interjeição vocal conforme referido, pois por vezes entra simultaneamente com o coro.
Frequentemente vê-se afirmado que o cante é exclusivamente masculino, mas isso não corresponde à verdade, nem à origem histórica desta forma de canto popular, pois antigamente, no seu contexto espontâneo, o povo alentejano, como aliás o das outras províncias, cantava em coro misto, vozes masculinas em conjunto com as femininas. Cantava-se nos campos durante os trabalhos agrícolas (apanha da azeitona, ceifas, mondas – aqui só mulheres – etc.), mas sobretudo nas pausas desses trabalhos e também no caminho em direcção aos campos e no regresso. Em todas essas circunstâncias se encontravam rapazes e raparigas, homens e mulheres – e, obviamente, todos cantavam. Não faz, naturalmente, sentido que, estando todos juntos, só cantassem as vozes masculinas. Em relação aos cantares polifónicos minhotos também se disse o mesmo, mas como se eles fossem exclusivamente femininos. Também erradamente, porquanto nas desfolhadas, serões e trabalhos do campo, circunstâncias onde espontaneamente ocorriam esses cantares colectivos, não cantavam só as mulheres, mas todos os que ali se encontravam, homens e mulheres.
A pesquisa de José Alberto Sardinha junto das pessoas mais velhas nos anos 1970 e 80 na planície alentejana indica inquestionavelmente que outrora o canto alentejano era interpretado, na sua forma mais antiga, em coral misto – as suas recolhas confirmam-no, como pode ser escutado nas publicações discográficas abaixo referidas, algumas das quais com coro exclusivamente feminino, como é o caso de Alcáçovas no ano de 1984. Depois, à medida em que os trabalhos agrícolas se foram mecanizando, o canto coral alentejano resistiu apenas nas tabernas, frequentadas, como é sabido, apenas por homens. Foi esta realidade da taberna que veio a consagrar a ideia, errada, como se vê, de um canto exclusivamente masculino. Ultimamente, porém, a formação de grupos corais para exibição do canto polifónico noutros contextos performativos (encontros de coros, arruadas festivas, cortejos etnográficos) tem vindo a incluir a presença de vozes femininas, formando-se mesmo, em certas localidades grupos exclusivamente femininos.
Sobre a origem do canto polifónico alentejano, algumas fantasias se têm escrito, de que se destaca a tese arábica, destituída de qualquer base ou fundamento sério. Não cabendo aqui desenvolver esta matéria, de natureza interessante mas a ser tratada noutra sede, dir-se-á apenas que a origem do cante, como aliás da polifonia vocal popular de todas as outras províncias, deverá ser encontrada na música litúrgica que, desde a Idade Média até aos nossos dias, foi pelo clero ensinada ao povo e que este depois transportou para os campos e outras circunstâncias da sua vida quotidiana, aplicando aos cantos profanos as fórmulas harmónicas aprendidas nas capelas que se formavam para as festas e ofícios solenes da Igreja. Assim se explica que os cantos alentejanos ao Menino Jesus e aos Reis Magos sejam os que apresentam características musicais indubitavelmente mais arcaicas, ao passo que os de carácter lírico têm construção musical notoriamente recente – v. Polifonia vocal.
Outro mito do canto polifónico alentejano é a sua interpretação exclusivamente vocal, alla capella, isto é, sem acompanhamento instrumental, o qual foi derrubado pela pesquisa de José Alberto Sardinha sobre a viola campaniça (vide), que demonstrou a presença deste instrumento musical como acompanhante das modas polifónicas.
O canto popular alentejano foi elevado a Património Imaterial da Humanidade em 2014.
Mais: Viola campaniça, o outro Alentejo, disco vinil, 1986, e livro com o mesmo título, de 2001, ed. Círculo de Leitores/Tradisom, da autoria de José Alberto Sardinha.
Discografia: Recolhas Musicais da Tradição Oral Portuguesa, 1982, de José Alberto Sardinha, Disco 3, Lado B, Faixas 1 (Safara, Moura) e 5 (Vila Verde de Ficalho, Serpa); Viola campaniça, o outro Alentejo, disco de vinil, 1986, de José Alberto Sardinha, Lado A, Faixas 5 e 7 (Funcheira, Ourique), Lado B, faixa 2 (Funcheira, Ourique); Portugal – Raízes Musicais, BMG/Jornal de Notícias 1997, recolha de José Alberto Sardinha, CD 5, Faixas 1 (Ourique), 6 (Ourique), 11 (Odemira), 21 (Alcáçovas, Viana do Alentejo), 23 (Moura), 28 (Ourique), 30 (Serpa), 33 (Vidigueira).
N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.