Cana verde – Música e dança tradicional, hoje circunscrita ao Minho e Trás-os-Montes, mas outrora expandida por todo o país, como revelam notícias pretéritas. Deve ser classificada como baile solto ou aberto (vide), estrato coreográfico mais antigo. Muito utilizada para o canto ao desafio, com ou sem baile simultaneamente. Em 1893, César das Neves descreve assim a coreografia da cana verde de S. Martinho de Dume: “Formam-se os pares em duas fileiras, frente a frente; o cavalheiro do primeiro par e a última dama da fileira oposta vem ao meio e recuam durante os primeiros quatro compassos, mudando-se em seguida o cavalheiro para o lugar da dama e esta para a do cavalheiro. Repetem assim a dança nos outros quatro compassos, cruzando de novo e voltando aos seus lugares, ainda vem ao meio durante mais quatro compassos. Em seguida dança outro par pela mesma forma e assim vai continuando a dança, que só finda quando todos os pares tenham feito a mesma evolução”.
Actualmente é ainda muito bailada nas romarias nortenhas, ao som das concertinas, castanholas e reque-reques. Roda grande evoluindo em sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, pares “desagarrados” e mãos no ar, eles com castanholas, elas fazendo estalinhos com os dedos. Na parte mais rápida, o homem agarra a mulher só nos braços ou com as mãos, sem a enlaçar, ligeiramente de lado, em galope, bailando ele de frente e ela às “arrecuas”, sempre ao sabor da roda, sem “valsearem”. Na parte mais lenta, viram ao par vizinho, batem e regressam ao seu par. Segue-se o ritmo mais acelerado e assim sucessivamente. Compasso binário, por vezes quaternário.
A primeira colectânea de música tradicional, editada em 1872 com autoria de Adelino das Neves e Mello, transcreve, na secção Cantigas do Minho, uma Cana Verde, grafada em binário, com quadras idênticas às que ainda hoje se praticam nessa província.
A origem musical da cana verde deverá situar-se no passacalhe, velho género musical utilizado pelo povo ibérico para tocar e cantar pelas ruas, nas tradicionais rondas dos rapazes (pasear por las calles – vaguear, rondar, pelas ruas), o qual veio, no séc. XVIII, a conhecer consagração erudita, pois foi cultivado por vários compositores, como Lully, Gluck e Bach. Mais tarde caído em desuso entre as classes elevadas, o passacalhe manteve-se na tradição popular e, graças à enorme versatilidade da sua estrutura musical (base harmónica com alternância entre a tónica e a dominante, permitindo grande variedade de formulações melódicas), veio a tornar-se um tronco comum de muitos géneros bailados pelo nosso povo, como os fados corridos, a chula, a cana-verde, a rusga, alguns pezinhos, alguns malhões.
Esta fonte comum para todos estes sub-géneros, ou melhor, espécies, tem dado origem a algumas confusões ou afirmações aparentemente contraditórias, como: César das Neves, 1893, numa partitura da Cana Verde, em quaternário, escreveu como sub-título “Chula de S. Martinho de Dume, distrito de Braga”; Rebelo Bonito atribui à chula a origem do fado (corrido, entenda-se); Pedro Homem de Mello afirma, aliás acertadamente, que a Rusga ao Senhor da Pedra é um “autêntico fado corrido”.
Mais: A Origem do Fado, de José Alberto Sardinha, Tradisom 2010, p. 248-249 e 274 a 279.
Discografia: Portugal – Raízes Musicais, BMG/Jornal de Notícias 1997, de José Alberto Sardinha, CD 1, Faixa 25 (Celorico de Basto); Recolhas de Armando Leça, inéditas, arquivo RDP, bobine AF-523 (Lousado, Famalicão), AF-527 (Paços de Ferreira), AF-532 (Coimbra).
N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.