Almas do Purgatório – Continuadora do antiquíssimo culto dos mortos, existente em todas as civilizações, a devoção às Almas do Purgatório é praticada pelo cristianismo desde os seus primórdios. Factor importante para essa devoção foi a crença de que Cristo teria aparecido a S. Gregório Magno anunciando-lhe que as almas caídas no fogo do Purgatório poderiam ser salvas mediante as orações dos vivos. Mas foi como reacção à abjuração de Lutero, que negava a existência do Purgatório e, conseguintemente, a validade e a eficácia do sufrágio dos vivos pelos mortos, que a Igreja recomendou, já na última sessão do Concílio de Trento, em 1563, o revigoramento do fervor pelas almas cristãs caídas ao fogo do Purgatório.
Foi, pois, o movimento doutrinário da Contra-Reforma que definitivamente impulsionou por todo o mundo católico a devoção às chamadas “Almas Santas Benditas”, a qual veio a alcançar em Portugal expressões artísticas e religiosas verdadeiramente singulares, sobretudo ao nível da religiosidade popular, como as conhecidas alminhas dos caminhos e os cânticos populares da mesma inspiração.
O culto às Almas do Purgatório atingiu proporções inimagináveis, visíveis na quantidade de confrarias das almas que foram criadas por esse país fora, em quase todas as localidades. As principais igrejas têm sempre um altar das almas e a primeira missa do dia era sempre em honra das almas santas.
Com este impulso devocional, é de aceitar que a partir do séc. XVI tenham surgido cânticos às almas do Purgatório, cujas características musicais nos são, porém, completamente desconhecidas. O que se pode descrever é a situação a que esses cânticos chegaram ao séc. XX, a partir das recolhas dos vários colectores que ao assunto se dedicaram.
Assim, deverá definir-se dois tipos essenciais de venerar musicalmente as Almas do Purgatório: um deles, que terá a sua origem nas referidas confrarias das almas, destina-se a pedir, cantando, esmolas para mandar dizer missas pelas alminhas – é a Amentação das Almas – vide; o outro constitui uma exortação cantada para que todos os que a escutam rezem um Pai-Nosso e uma Avé-Maria pelas almas dos defuntos – é a Encomendação das Almas (vide), forma espontânea deste culto, sem interferência nem do clero, nem de qualquer confraria, bem como o Brado ou Pregão das Almas (vide), forma individual geralmente resultante de promessa, mas consistindo também numa exortação à oração. Não é, porém, de excluir que na génese destas duas últimas formas possa também ser encontrada a acção das referidas confrarias das almas.
A época do ano mais adequada para estes cânticos começou por ser o mês de Novembro, que abre precisamente com o dia de Fiéis Defuntos e é o mês especialmente dedicado às Almas do Purgatório. Estendeu-se, porém, por todo o ciclo do Inverno, que representa a morte da Natureza, a tristeza e a dor: incorporou-se nas manifestações de Boas-Festas, na Natividade e Ano Bom (Peniche, Lourinhã, Bombarral, Cadaval, Alenquer, Terras de Santa Maria, Região do Pinhal, Alentejo, Trás-os-Montes), acabando por se situar preferencialmente durante a Quaresma, período em que a Cristandade guarda recolhimento pela paixão e morte de Cristo e que, como tal, acabou por ser considerado próprio para celebrar também o culto às Almas do Purgatório.
A obrigação religiosa de rezar pelas almas dos defuntos fica bem patente numa das quadras de alminhas dos caminhos que, do mesmo passo mostra a necessidade de se manter essa corrente de tradição para que no futuro os vindouros também rezem por nós: “Das Almas do Purgatório / É bem que nos alembremos / Nós havemos de morrer / Sabe Deus p’ra onde iremos”. Ou ainda estoutra: “Numas alminhas da estrada / Nunca passes sem rezar / Talvez um dia precises / Das preces de quem passar”.
Mais: Tradições Musicais da Estremadura, de José Alberto Sardinha, Tradisom 2000, p. 149 a 170 e 207 a 212.
Discografia: Tradições Musicais da Estremadura, de José Alberto Sardinha, faixas 20 (Miragaia, Lourinhã), 21 (Maceira, Leiria) e 22 (Maceira, Leiria) do CD 2 que acompanha este livro; Recolhas Musicais da Tradição Oral Portuguesa, 1982, de José Alberto Sardinha, Disco 1, Lado A, Faixa 6 (Telhado, Fundão), Lado B, Faixa 2 (Boalhosa, Ponte de Lima), Disco 2, Lado A, Faixas 8 (Alcofra, Vouzela) e 11 (Vermilhas, Vouzela); Portugal – Raízes Musicais, BMG/Jornal de Notícias 1987, recolhas de José Alberto Sardinha, CD 1, Faixas 7 (Ribeira de Pena), 21 (Ponte de Lima) e 27 (Cabeceiras de Basto), CD 3, Faixa 17 (Vouzela); CD 4, Faixa 24 (Fundão), CD 5, Faixa 34 (Bombarral). Recolhas de Armando Leça, inéditas, arquivo RDP, bobine AF-526 (Póvoa de Varzim).
N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.