Vira

Vira – Canção bailada de grande popularidade e disseminação nacional, com estrutura rítmica de base ternária em 3/4 ou em 6/8, conforme as versões. Afirma-se por vezes que é própria, exclusiva, ou pelo menos originária do Minho, mas as recolhas efectuadas por todo o país e o estudo das suas origens históricas não autorizam uma tal asserção. A sua proximidade musical com o Fandango, o Saloio, a Gota, a Tirana, as Saias, leva-nos a uma provável origem comum, talvez derivada da antiga seguidilha.

Coreograficamente, é um baile aberto (vide) por vezes numa roda que rapidamente se transforma em quadrilha (grupo de quatro bailadores) que gira, cruza, vai ao centro, bate, troca de par, evoluções que originaram várias denominações, como vira de cruz, vira rodado, batido, etc. O nome de “vira” provém do facto de, em certa altura da evolução coreográfica, a roda ou os bailadores alterarem o sentido dessa evolução, passando a bailar em sentido contrário ao que vinham executando, geralmente com gritos de “Vira! Virou!”

Na Estremadura, a recolha de José Alberto Sardinha registou grande número de viras, com variadas denominações, como por exemplo: Vira Antigo (Reguengo Grande, Lourinhã, e Casais Gaiola, Cadaval), Vira das Sortes (Olho Marinho, Óbidos), Vira Valseado (Outeiro da Pedra, Leiria), Vira de Costas (Colaria, Torres Vedras), Vira das Desgarradas (Reguengo Grande, Lourinhã), Vira Batido (Casais Gaiola, Cadaval, e Cruzes, Caldas da Rainha), Vira de Três Pulos (Assafora, Sintra), Vira de Dois Pulos (Lagoa, Mafra). Como se vê, se o nome da maior parte deriva de particularidades coreográficas, outros há que resultam da função que exercem, como é o caso do Vira das Sortes, que era especialmente tocado para festejar a inspecção militar dos mancebos, pelas ruas e depois no baile da aldeia respectiva, ou o Vira das Desgarradas, que se tocava no princípio do “bailho” (“ao armar do bailho”) enquanto não se reunia toda a mocidade e também por vezes nos intervalos, tendo como característica principal o facto de ser cantado ao desafio entre as raparigas e os rapazes.

Segundo o mesmo investigador, a forma coreográfica mais divulgada pela Estremadura é sucedânea da roda, umas vezes com os pares “agarrados”, outras “desagarrados”. Formam uma grande roda, que evolui no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. A certa altura, os rapazes abandonam os seus pares e dirigem-se para o centro, onde batem com o pé direito, após o que regressam à origem, “arrecuando” até aos respectivos pares. A roda recomeça a girar e, na vez seguinte, são as raparigas que vão ao centro e assim sucessivamente.

Já em Casais Gaiola, concelho de Cadaval, o Vira Batido nunca era bailado com os pares agarrados, o que está mais próximo da forma mais antiga de baile aberto, de que acima se falou. Ao início, após a formação da roda, vão os rapazes ao meio, onde batem os pés por três vezes, logo retomando o seu lugar na roda. Depois, é a vez das moças fazerem os mesmos passos. Estas regressam à roda justamente quando a música ganha um andamento mais rápido, altura em que cada um dos membros dos  pares “passa” até atingir o seguinte, que rodeiam para regressar para junto do seu par, sempre ao “ritmo valseado”. Andam sempre “desagarrados”.

O Cancioneiro de Músicas Populares, de César das Neves, editado na última década do séc. XIX, transcreve um vira, notado em 6/8, denominado “Vira Varino”, e aí identificado como sendo uma chula. Em face do compasso, admite-se que esta última denominação provenha do facto de o colector considerar esta dança como “popular”, de gente “baixa ou chula”, na linha do que antigamente se considerava chula – v. Chula. Recolhido nas praias do Furadouro, Ovar, o colector informou que ali era conhecido por Vira do Minho. Esta ligação do vira à província minhota, feita nos anos 1890, é importante porque demonstra que já nessa época era estabelecida essa relação, pelo menos quanto a este vira em concreto (poderia haver na localidade outros viras que não fossem “do Minho”). Em face da ausência de outras notícias oitocentistas, não se pode ir muito além disto. Poderia, pois, ter-se dado o caso de os viras do Minho terem uma tal preponderância em relação aos de outras províncias que se expandiu a ideia de que os viras eram originários desta província. Como quer que seja, ou tenha sido, a verdade é que ao longo do séc. XX os investigadores registaram viras em outras províncias – v. infra a discografia, nomeadamente a referente a Armando Leça, por se reportar ao princípio do séc. XX.

A sua coreografia é assim descrita na mencionada notícia oitocentista: “Em grande roda, vão os pares girando sobre a esquerda, balanceando-se durante a quadra. No estribilho, cada par, de braços erguidos, dando estalinhos com os dedos, roda sobre si independentemente e cada indivíduo gira sobre si mesmo acompanhando a música e virando conforme diz a letra”.

Verifica-se, porém, que a vasta colectânea de César das Neves inclui apenas um vira, justamente o referido “vira varino”, o que é surpreendente em razão da enorme popularidade e extensão territorial de que goza actualmente o vira, sobretudo no Entre-Douro-e-Minho. Natural seria, pois, a inclusão de mais viras, designadamente provenientes desta última região, o que não ocorreu. Fica-se sem saber a razão desta omissão.

O arquivo sonoro de José Alberto Sardinha, inédito, apresenta registos de viras em muitas províncias. Além do Minho (em grande profusão) e da Estremadura (já referida), a sua pesquisa no terreno junto das populações rurais de mais idade gravou viras nos seguintes aros concelhios: Marco de Canaveses, Amarante, Penafiel, Paredes, Arouca, Feira, Vila Nova de Gaia, Ovar, Oliveira de Azeméis, Murtosa, Montemor-o-Velho, Mealhada, Penacova, Viseu, S. Pedro do Sul, Tondela, Castro Daire, Vila Real, Montalegre, Trancoso, Guarda, Penamacor, Covilhã, Fundão, Pampilhosa da Serra, Arganil, Castanheiro de Pera, Cantanhede, Palmela, Sesimbra, Salvaterra de Magos, Rio Maior e Avis.

Para se poder avaliar e estudar as origens do vira, do fandango, da tirana, das saias, danças todas elas de base ternária e provavelmente tributárias, como se disse, da antiga seguidilha, é importante reproduzir a observação de César das Neves, em nota de rodapé a este Vira varino: “Tanto a música como a dança recordam-nos um fandango andaluz” – v. Fandango.

Alguns autores situam as origens do Vira no ternário da valsa oitocentista, enquanto outros a procuram mais atrás, como Gonçalo Sampaio e também Sampayo Ribeiro, que as coloca antes do séc. XVI e levanta mesmo a hipótese da sua filiação no tordião. Tomaz Ribas considera o Vira uma das mais antigas danças populares portuguesas, salientando que já Gil Vicente a ele fazia referência na peça Nau d’ Amores, onde o dava como dança do Minho. Esta informação, a confirmar-se, constituiria um elemento importantíssimo para situar histórica e geograficamente a origem do Vira.

Todavia, lendo-se atentamente a tragicomédia vicentina, verifica-se que a passagem em causa não autoriza a asserção de Tomaz Ribas. Na verdade, trata-se de uma fala de um negro de Benim (Guiné) que, num português estropiado, afirma: “eu chamar ele minho vira / E ele chama-m’o cão”. Ora, aqui, a palavra “minho” não designa a província minhota, mas antes, provavelmente, o masculino de minha (no tal português estropiado atribuído ao negro do Benim), constituindo ainda um elemento paragógico para aumentar uma sílaba ao verso e assim completar a metrificação heptassilábica. Por outro lado, a palavra “vira”, neste contexto, não tem qualquer conexão com a dança a que hoje damos esse nome, parecendo que se trata apenas de um vocábulo achado pelo dramaturgo para rimar com o verso anterior (“tem boquinho tan sentira”) e sem significado nenhum (aparentemente pelo menos), na linha do atabalhoamento linguístico referido. Aliás, se Gil Vicente estivesse efectivamente falando do vira do Minho, natural seria que desde 1527 até ao séc. XIX existissem outras referências a tal dança minhota na documentação e na literatura portuguesa, o que não ocorreu.

Mais: Tradições Musicais da Estremadura, de José Alberto Sardinha, Tradisom 2000, p. 366 e 367.

Discografia: Portugal – Raízes Musicais, de José Alberto Sardinha, BMG/Jornal de Notícias 1997, CD 1, Faixa 3 (Barcelos), CD 3, faixa 1 (Murtosa); Tradições Musicais da Estremadura, de José Alberto Sardinha, Faixa 35 (Mafra) do CD 3 que acompanha este livro. Recolhas de Armando Leça, inéditas, arquivo RDP, bobine AF-459 (Bucos, Cabeceira de Basto), AF-523 (Palmeira, Braga e Vila Verde), AF-527 (Lordelo, Paredes), AF-528 (Paços de Ferreira), AF-529 (Ovar), AF-530 (Estarreja), AF-531 (Bom Sucesso, Aveiro e Vila da Feira), AF-532 (Condeixa e Coimbra), AF-538 (Outeiro, Sertã), AF-536 (S. Pedro do Sul).

N. B. – OS TEXTOS DESTA ENCICLOPÉDIA DAS TRADIÇÕES POPULARES ESTÃO SUJEITOS A DIREITOS DE AUTOR, PELO QUE A SUA REPRODUÇÃO, AINDA QUE PARCIAL, DEVERÁ INDICAR O NOME DO SEU AUTOR, JOSÉ ALBERTO SARDINHA.